[Pássaros que Caminham]

[A vida, disse-me um sábio português, é uma questão de proposta — "se tens asas, então voa!"]

Sou louco sim... pois até hoje, com as pernas já entrevadas, quando olho o meu chapéu, sem serventia, pendurado no cabide, eu viajo... voo!

Desabotoamento dos ipês na secura de agosto... sedento, clareia-se já o limo verde que a intimidade escura das palmas do bacuri guardava desde as águas, as outras águas já passadas, idas... Nos trieiros da invernada, a terra pilada pelas patas do gado, afina-se como um talco. Lá, na invernada da Cachoeira, o tempo se arrasta, coa-se no esvaimento das três... quatro... cinco horas da tarde amarelenta — vou devagar, em passo lento, para não levantar poeira.

O meu corpo conjuga-se, danço uma dança macia, com o bamboleio do corpo do meu cavalo castanho. O meu cavalo me sabe, evita causar-me sobressaltos, procura não perturbar os meus pensamentos soltos no ar, no céu, na vastidão dos campos, nas copas das árvores, nos cachimbinhos caídos do velho jequitibá, na macaúba magriça que eu não entendo como o vento não derruba, no piado langoroso do gavião, no grito da acauã, nos rastros bem feitos que a juriti deixa na poeira do trieiro!

Nesse mole-mole da cavalgada para casa — sou incomum, eu tenho olhos — surge a coisa estúrdia: não podemos entender, descompreendemos profundamente, o meu cavalo e eu, como pode, alguém, uma pessoinha assim, tão distinta feito a juriti, que, podendo voar, escolhe, caprichosa, o risco do bote certeiro da cascavel, ou da jiboia sorrateira, e decide caminhar grandes distâncias, pela poeira fina dos trieiros de agosto...

Ah, cê é doida, juriti, como é que cê faz uma coisa dessas?! Eu, hein? Me empresta essas suas asas, juriti, e cê vai ver aonde eu vou parar! Escapo pra longe, pra nem sei onde... voo sobre os abismos, sobre a névoa que me tolda a visagem! Juriti andeja, cê me confunde os miolos, juriti! Onde já se viu, um bicho a quem Natureza deu asas, caminhar assim, bestamente, na poeira dos trieiros? Larga mão de dar chute nas canelas do perigo, juriti, toma tento, levanta vôo!

[... E eu nem podia beber tanto; mas a vida já deu errado mesmo, e afinal,

"que importa perderme,

mil veces la vida

para que vivir..."]

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[Penas do Desterro, 25 de agosto de 2007]