Desalmada

E essa raiva súbita e mortal, que insiste em me corroer, me possuir, me corromper, como uso exclusivo de sua brincadeira sádica, e eu tonta, sempre me rendo aos seus encantos.

Ela que me faz forte, intransponível, incoerente, que me dá asas para voar sobre abismos inóspitos, habitados por almas sombrias... Ah! O Sombrio! Como sinto-me atraída por seu suntuoso encanto, é quase um prazer incompreensível. Amo o incompreensível. O odeio por vezes.

Odeio a forma como me olham, odeio demasiado quando não. Odeio sentir. Odeio ser alheia. Odeio mais ainda participar. Pra quê essa insistência em ter de pertencer? Pertencer a quê?

Os horrores da minha alma só me fazem compreender que não me importo, que chegou aquele momento que tanto faz. Só queria não ter alma, assim não haveria o que salvar, não haveria consciência, nem ignomínia. Seria só a casca, quem se importa com a casca? A casca nunca é deveras importante, é só uma capa para guardar algo precioso. Mesma coisa o corpo, ninguém faz algo com ele que realmente faça jus ao sacrifício de ter que viver. É só capa para comportar a alma, ela sim é preciosa.

Nisto vejo que nem disso fui digna, meu corpo, que de nada me vale, só serve para “guardar” uma alma desalmada, inútil. Nem pra ter uma alma boazinha eu servi. Talvez seja por isso também que eu me ame, apesar dos pesares. Apesar de ser eu.

À medida que busco significado para tal ignomínia, descubro que ela só é assim, bela e altiva, se vista como é: ignóbil. Não há porque vê-la de outro modo, seria transformá-la em outra definição, de outra coisa. Eu não gosto de outras coisas. Ou será que gosto?

Aprecio o bom, com a mesma paixão que o mau, isso que eu quero dizer: Não posso ficar em cima do meu muro, ora vendo a gente de um lado, ora do outro? Não quero descer, porque dói, quero observar, xingar, chorar, seja por causa deles, seja com eles. Adoro ver as pessoas. Muitas não me merecem, eu até me importaria se tivesse n’alma essa programação inserida. Meus sistemas são mutuamente confusos e nocivos ao meu próprio sistema. Isso me faz ser ferro, ou latão, pouco importa.

Sou de barro, que uma simples garoinha derrete, que o orvalho da manhã desmolda, remodelando em formas abstratas, obsoletas e ultrajantes, causando horror aos que avistam, mesmo ao longe, como lepra. Sou leprosa d’alma, deve por isso que todos sentem aversão a mim, onde será que anda minha cura?

Visto que não me importo, continuarei neste meu flagelo, leprosa. Não me importo e nunca me importarei com o fato de estar sozinha. Já disse que gosto? Minha condição de desalmada me permite isso. Amar o inamável. Ser o inamável.