Cachoeira
Cachoeira
Não foi a primeira vez que a vida me fez essa dedicatória: Seja cachoeira. Tampouco foi a primeira vez que eu obedeci. Meu corpo obedece, sem rebeldias, os processos vitais. Pouco indago às ordens que me vêm dos sentidos. Desconfio sempre das que me vêm de fora. Quando pequena, e ainda pequena, talvez para sempre pequena, talvez para sempre, talvez para, talvez sempre, talvez, simplesmente talvez, minha mãe me mostrou o segredo de uma cachoeira. A gente mergulhava o corpo na queda d’água e por baixo, numa caverna invisível ao que se via por fora, lá estava o ar precioso. E a gente ficava por horas ali debaixo, a água caindo sobre o corpo e nosso segredo acontecendo submerso. Naquele lugar, tem nome aquele lugar, Cachoeira do Doca, eu aprendi a entrar em mim. De lá pra cá, só precisei deslocar o Doca. Construí minhas próprias cachoeiras. De acolá tem cá também. Isso me veio num cartão postal que nunca chegou. Desde então, e antes que ficasse grafado no verso da cortiça, a mesma que guarda o segredo dos bons vinhos, os melhores vinhos, os mais macios, os mais encorpados, os que travam a garganta, os que nunca perdem o perfume das horas, meu corpo todo dia cachoeira. E não há dique que retenha essa cascata. Acontece, por vezes, da água arrombar de tal maneira o instante que é como se o abraço no tempo invadisse o chão da eternidade. Há invasão. Eu sei. Haja sempre. Eu acordei assim. Plantando uma parreira na eternidade.