“Mistério”
No mundo eu gosto do mistério. Aquele tipo de mistério que dá prazer. Não falo de coisa oculta. Nem o que pareça sobrenatural. Muito menos de metafísica. Talvez não seja o mesmo mistério que angustiou muitos escritores. E não é mesmo. É um mistério barulhento. Ele pode ser ouvido, e quem ouvir pode até dançar. Não é a tal coisa que não pode ser nomeada. Que a palavra atrapalha o contato. O mistério é translúcido. Reduz-se o intervalo. Não há intervalo. A distância entre o homem e o mistério deveria igualmente se chamar mistério. Trata-se de muita imaginação. A imaginação é de tal humanidade que fabrica o mistério. Entendo a imaginação como uma tendência... Não entendo nada. Entender é uma maneira de multiplicar o mistério. De criar, por exemplo, o mistério da certeza. A realidade escondida nalguma parte, eis o mistério para a maioria. Já dizia Mario Quintana, com toda aquela ironia simpática, que o mistério está aqui mesmo. Convivemos com ele. Por falta, e não desejo especificar qual, gozamos pouco desse mistério. Não se pode culpar uma má vida carregando-a de mistério. Não há culpa nesse caso. A própria culpa é tratada como mistério. Vida insone, cheia de preocupação, irritação com todo mundo ou quase o mundo inteiro. Muitos se sentem assim e atribuem ao mistério, tamanho poder. Desolação. Que há no mistério de tão misterioso. Que há de tão secreto nele? Misteriosamente lhe dão um sentido misterioso. Eu não sei se me perdi em tentar falar do mistério. Mas é bem provável que sim. A palavra não me impede de falar do mistério. Porque já não há em mim esse tipo mascarado de romantismo. Tem que atravessar o sentido da palavra? Cadê esse sentido, do qual eu possa me esquivar? A palavra o possui? O sentido não é a senda para o mistério, e, ao mesmo tempo, o próprio mistério, na minha escrita, sem mistério? Eu não quero mais ouvir a palavra, para não ter de determinar se ela é ou não sensata. Eu sei que ela vai me perseguir o resto da vida. Sei também que irei ceder, e até amá-la. Nisso não há mistério. Também não há salvação, porque não há maldição senão a da própria criação. Desse jeito não há como dançar. A palavra não atrapalha coisa nenhuma. E também através dela não se busca mistério que se queira eliminar. Oras, se há mistério que precisa de um nome. Um mistério desse tipo é preciso desnomeá-lo. Desde o momento que iniciei a escrita tenho o propósito de não criar mais mistérios. Mas não há vida humana sem mistério. E estou a falar sem repudiar a vida humana encerrada no mistério. Simplesmente o que há de mistério é uma tendência humana de escapar para o território desumano, e se isolar nessa faixa de areia movediça. Se cada um fosse livre para encontrar-se no desumano, mesmo que para se afundar a qualquer instante, o que se chama mistério cessaria seu governo sobre o homem. Atrevo-me a dizer que o homem está em lençóis mais puídos que o próprio Deus, também um de seus mistérios. O mistério dos criadores de mistério pelo menos é silencioso. Os criadores de mistérios, esses sim são barulhentos. Mas ao não ouvirem o próprio barulho como um tipo de silêncio, o silêncio, e o silêncio do silêncio domina o homem em sua própria maneira de viver. E aquilo que se torna mistério deveria ser simplesmente um viver. Repito que gosto do mistério. Gosto de dançar vivendo o mistério. Se ouço os alaridos, as múltiplas vozes, sou até capaz de tropeçar, encher meus olhos de lágrimas, e tudo se torna bem mais difícil que suportar o fastio da repetição. Que diferença há de ter para mim entre o criador de mistérios e aqueles que os seguem com rigor de disciplina? A crença no mistério é o mesmo que inventar o mistério. Essa batucada sim é para dançar, e esquecer a invenção misteriosa de termos de justificar a existência. A dança remete ao puro viver. O amor. Eis um mistério que precisa ser vivido sem agonia. No máximo como uma angústia que incita prazer. O amor é aquele sentimento que permite uma dose de racionalidade e exige a presença da loucura. Só amando será possível perceber além do amor. E percebendo além do amor uma tranqüilidade pode fazer o amor perpetuar cada vez mais. No fundo o amor não é um mistério. Não é aquela coisa impossível por ser indomável e nos pegar de surpresa. O mistério está em quem se prepara para amar antes de viver um amor. O mistério do amor reside no homem que ama, e não quer amar. Encontra-se no homem que não ama e quer amar a todo custo e acaba por não amar, ou amar apenas a vontade de amar. Um homem que se apaixona pela própria vontade e não se satisfaz nunca. O mistério do amor nasce dentro do homem. Nasce da imaginação. Quanto à pobreza de certas figuras certamente são porque o mistério é cada vez maior para um homem, quando ele é aceito vindo de outro homem. Além de nossa imaginação sair em busca do que acha improvável em nossa realidade, ela também faz paralisar diante da suposta realidade que pode nos invadir. Uma imaginação que ora é positiva e ora é negativa. Se o amor é perfeito nele há um mistério perigoso. Nada é perfeito senão a construção de uma vaidade perfeita. O amor perfeito costuma atender demais a um indivíduo e retirar a tranqüilidade do outro. Pode acabar sendo um desastre amar sem a desconfiança sorrateira de que se trata de amor. O amor é sim mais que uma idéia, é uma vivência, mas ainda que fosse uma idéia platônica, independente do corpo, não é saudável crer em idéias. E como as vivências são cercadas de idéias mirabolantes, é saudável igualmente não crer demasiado no sentimento de amor. Tudo isso se mistura: idéia, vivência concreta, sentimento de amor verdadeiro. Explicar o que vem primeiro é uma crença aqui desnecessária. É amando que surge no indivíduo aquela acuidade serena para amar cada vez mais intensamente sem o engodo da paixão. A realização do amor só é possível quando as paixões que prejudicam essa realização ceder lugar às condições. Pode-se presumir que as paixões ordinárias não cedem espaço com a finalidade de deixar o amor se realizar. Paixões ordinárias porque são controladas pela astúcia humana que quer defender certos interesses individuais, e por isso não sabe amar o amor que lhe é dedicado. O amor em si não é uma ilusão, nem é um mistério, nem é uma fantasia, nem é impossível. O amor é uma aprendizagem, ou melhor, é um saber. O amor é como a linguagem, existem as regras, nem sempre fixas. O mistério do amor não está no arrebatamento imediato do destino do indivíduo, o mistério está em não entender sua linguagem. E a linguagem do amor é a linguagem dos homens, eis o não-mistério do amor. O mistério do amor é o desconhecimento do seu não-mistério, da sua magia simples, da sua condição entre dois amantes com acuidade para amar. Quando há esse encontro de indivíduos, é tempo de amar, fazer festa, dançar...