Entre gatos, cães, latim, latidos, cuidados e descuidos
Isso de amar as palavras vem me tecendo faz tempo. Ainda que faz tempo seja uma expressão com muito menos sentido do que faz calor ou faz frio. Então, a surpreendência que a origem da palavra viver por um instante promove em mim não surpreende. Olhando lá na raiz, a palavra era viverE. Do latim. Gosto de pensar que isso de ser latim causa tanto barulho como se fosse um cão abandonado latindo. Eu gosto de cães abandonados. Tem uma tristeza neles que me toca. E uma liberdade quase impossível aos seres cuidados. Essa palavra também abanou o rabo pra mim hoje. Mesmo que fosse meu gato quem estivesse ali, fiel ao meu cheiro. Alguma coisa, acontecida de uma certa maneira, me pareceu des-cuidada. Eu, claro, de plano, queria o cuidado. Soa bonito dizer que a gente cuida e é cuidado. Mas depois, escura e ondulada como os lugares onde melhor se vê, intuindo e com as mãos, eu vi que cuidado guarda cogitação, pensamento, estratégia. Logo logo, pois pois, no duelo entre razões e desrazões, em algum momento, os seres descuidados acabaram se mostrando mais verdadeiros. Dá para entender, agora, porque a palavra cuidado é a mesma para o cuidado de zelar pelo outro e para aquele que evita o perigo. Quem cuida vigia. Sendo assim, dobrei a palavra cuidado, com cuidado, e a guardei na última página de um livro pouco usado. Vou vigiá-la ali, por algum tempo. De novo o tempo. Eis que choveu. Foi quando viver pareceu mais interessante que cuidar. Daí que vi que viver vem de viverE. E esse E que sobra face a face com o viver faz todo a diferença. Aí reside um excesso, um plus, um elo de ligação, um desfecho por vir... Podem não acreditar nessa curva, mas eu sou mesmo oblíqua e isso me devolveu ao acontecido. Foi assim que o descuido voou livre pelas minhas horas até vir pousar no dito popular: quem ama cuida. Não estou tão certa. Em algum momento, quem ama também descuida. Porque o amor pede liberdade. Ou pede pra se sentir em casa, à vontade, como se fosse domingo e houvesse, pela natureza do que rezam esses dias, o direito sagrado ao descuido.