Existem pessoas que não fecham gavetas.

Hoje ela disse como uma interrogação com uma dose de ironia no ar.

- Existem pessoas que não fecham gavetas.

Fato é que se foram perto de trinta anos de convivência, desde aquele dia ao arrumar as cadeiras em volta da mesa na festa, como um passe de mágica ou quem sabe em uma destas coincidências da vida, ficamos ali, lado a lado em uma conversa agradável com um fundo musical,regada a algumas taças de vinho,e que aos poucos nos entendemos como se fosse a primeira e última vez.

Tempo passou e como era próximo ao dia dos namorados, sem que nem uma ligação telefônica ou outro encontro, até que em um impulso de coragem ao lembrar do gosto dela pelas músicas do Fagner, comprei naquela época um Vinil com a composição que havia com uma parte da letra que dizia mais ou menos assim:

"Quando você for embora, moça branca como a neve, me leve..."

Parecia uma mensagem triste mas ao mesmo um apelo para que pudéssemos caminhar juntos pela vida.

A chegada em Ouro Preto coincidiu com um mês de chuvas que pareciam que as ladeiras virariam rios que não secariam jamais, logo depois veio uma época de um frio precedido de neblina fazendo com que não conseguíssemos ver o outro lado da rua, ao que rendeu algumas dúvida se ficaríamos mesmo nesta cidade antiga que parecia uma volta no tempo...

Combinamos, que iríamos ficar, um ano e ver, mas ficamos um e mais uns e ainda estamos aqui, subindo e descendo por estas ruas de pedra.

Foram idas e vindas, alguns percalços, e muitos momentos bons que ficam marcados na nossa estória.

Hoje mesmo na hora do café da manhã, ela disse, olhando para a gaveta da cozinha onde eu acabara de pegar a faca para passar manteiga no pão,em tom de reprovação:

- Porque será que existem pessoas que não fecham gavetas?

Achei interessante e fiz uma viajem no passado por instantes revendo os fatos desde aquele dia da festa em que malandramente ficamos próximos e cheios de cerimônia com o outro.

Achei emblemática a afirmação, ou a condenação ao meu desleixo com as gavetas do armário, e me baseando no que a poeta, Adélia Prado, que esta semana no evento fórum das letras de Ouro Preto,disse, que devemos prestar atenção as pequenas coisas, e não ter nenhum pudor de escrever, colocando no papel as divagações por mais simples que possam parecer.

Até o fato acontecido hoje,por ela me chamar atenção, e assim fazendo uma analogia, pois meu esquecimento foi com a gaveta da cozinha, sendo mais grave que a muitos anos, a "moça branca como a neve..." abriu as portas do meu coração sem pedir licença e com ela me levou.

Haja gaveta para fechar, estória para contar, e poesia para escrever...