dona rosa
empaquei nas mesmas cores e melodias.
hoje enxergo em tons pastéis e do meu violão só saem notas dissonantes.
hoje parece que não mergulho mais. mas vez ou outra tenho a sensação de submergir tão profundamente, que chego a perder de vista a superfície.
empaquei nos apostos, só pra ressaltar minhas angústias
hoje meus olhos só pintam os tons da última música que a gente ouviu.
tudo meio azul-acinzentado. com gosto de ferrugem. com cheiro de armário antigo esquecido num depósito, ou na casa da tia-avó do interior.
ela é igual a mim. a tia avó.
o tempo a acostumou a acordar às 5:30h da manhã e colocar comida pra o passarinho que já nem canta da gaiola. três colheres e meia de açúcar no café mal coado. fraco. (numa xícara rosa-chá desbotada). café com gosto de preguiça porque lá na casa de dona rosa todo dia é domingo. às vezes, quando, por descuido, acaba acordando mais tarde, a casa se vivifica e fica com cara de quarta-feira, porque o passarinho preso cantarola de fome.
o tempo deu um jeito na falta do seu falecido que, além de suas manias, levou também suas emoções. o tempo acostumou dona rosa com a falta. não a que ela sentia de seu marido. mas a que sentia dela mesma. a rosa que ela era enquanto seu tunico esteve perto. rosinha. que pegava flor da estrada pra enfeitar a mesa e comprava o chitão mais colorido pra fazer suas saias. a rosa que não esperava por tunico, porque sabia que ele voltaria antes do passarinho parar de cantar. difícil foi pra dona rosa desacostumar. com o cafuné que ele fazia de tardinha. e com o sorriso que vinha sempre acompanhado de um beijinho na testa. o perfume cítrico natural que tunico arranjava só de sacudir a limeira depois do almoço. difícil pra dona rosa foi desacostumar. com o cheiro da única cadeira de madeira, que era exclusiva de tunico. com o peso da perna nas suas, com o barulho da respiração alta, com o espaço do peito preenchido.
é sempre mais difícil pra quem fica. principalmente quando ficar é emperrar em cores e sons. é tentar estancar um peito que jorra afeto e pesar, na mesma proporção. é nadar na superfície e se afogar por dentro. (de embolia pulmonar, se foi tunico)
o tempo não acostumou dona rosa com a falta de seu tunico. mas ajudou a abandonar quem ela foi quando ele esteve perto. porque o tempo, no fundo, desacostuma.
Samantha Jones
23/07/2017
Senhor do Bonfim
20h