O homem, o livro, a flor

A boa moça distraidamente girava o salto do sapato vermelho numa das mãos. Na outra segurava um sorvete, que escorria pelos dedos sob o sol quente de dezembro. Sentada num dos bancos do Trianon parecia divertir-se com seus pensamentos. Trazia labaredas nos olhos faiscantes e um sorriso safado no canto da boca. O homem veio e sentou-se ao seu lado. Deixou sobre o banco algumas flores que trazia, parecendo meio desajeitado. Nas mãos magras e de dedos longos, segurava um livro. A moça não pode ver a capa, que estava envolta em um papel de seda já borrado de café e que deixava transparecer apenas nuances de seu título. Ele a observou por um tempo, encantado com seu sorriso e depois começou a ler, alto o suficiente para que ela ouvisse. Imediatamente aquela voz jovial e melodiosa despertou a atenção da moça, que passou a ouvir, interessada, o que ele dizia. Eram estórias curtas, densas e cheias de sedução. Falavam do encontro de um homem e uma mulher. Eram situações confusas, que misturavam a vida que era e aquela que poderia ser. Trazia fantasias disfarçadas de desejos já realizados e promessas veladas que talvez nunca fossem cumpridas. Eram estórias onde as madrugadas não acabavam e os dias amanheciam fora de hora. A moça continuava ali, escutando. Ele dizia dos amantes e de seus delírios com tal ardor que ela esqueceu-se do sorvete que derreteu no chão quente. O calor que a inundava não era mais do sol alto em dia de verão, onde a cidade de concreto armado ferve, não! Era um calor que lhe vinha de dentro e enrubescia a face e lhe fazia nós no estômago. Ela se entregara de tal modo ao homem e a estória que era, ela mesma, a própria mulher do livro. E por traz da imagem da boa moça, pulsava agora a mulher. Ele continuava a ler, palavra por palavra a envolvia com sua estória. Imaginava o que a moça estaria pensando. Quase podia ver sua alma

através do olhar divertido e curioso que ela lhe lançava. Indagou-se se a estória era realmente boa ou se o interesse da moça fora resultado da sua forma de dar vida às palavras. Não sabia, mas divertia-se com a dúvida. Ela parecia ansiosa para saber o que aconteceria na próxima página. O homem, percebendo quão aflita a moça ficava cada vez que ele demorava um pouco mais para dizer a próxima frase, passou a controlar a leitura, de modo que podia sentir o peito dela arfando, o ar faltando-lhe nos pulmões. Deliciava-se por tê-la sob seu controle e via, com uma mistura de poder e satisfação, quando ela voltava a respirar cada vez que ele continuava a ler. E quanto mais os amantes se envolviam e quanto mais intensas eram suas batalhas de sedução e prazer, mais a moça e o homem se aproximavam. O ar em volta deles ia sumindo... No ápice da estória, onde os amantes do livro encontravam-se a beira do precipício, prestes a se jogar numa aventura delirante, o homem fechou o livro. Olhou ao redor, levantou-se e seguiu. Deixou as flores sobre o banco...