Fé cega, razão louca
"A razão é a fé no que se pode compreender sem fé; mas é uma fé ainda, porque compreender envolve pressupor que há qualquer coisa compreensível"
___ Bernardo Soares, Pessoa
Envolto por uma simplicidade intangível, afobado pela liberdade com que despojo-me de mim, encosto-me sobre a monotonia das horas que velejam para lugar nenhum, pensando sobre fé e razão. Balançam, junto as horas, sensações calmas como folhas orvalhadas de frescor, sopradas pelo grande desconhecimento com que alegremente morre o dia.
Surge-me na quietude da consciência um torpor de nada, um abafamento na alma, um grito sem voz que tira-me, sem que eu o queira, do banho morno com que me descanso de sentir os pensamentos. Inquieto-me numa compreensão nula, fico de todo paralisado num intermédio que nada diz senão que nada há para se dizer. O que compreendo é desmentido por mim próprio no ato mesmo em que penso; o que sinto se desfragmenta como areia de castelos na praia. Estou suspenso entre tudo e nada, oscilando com as horas que não significam senão a secura do tic tac e da exterioridade morta com que a vida nos divide do inorgânico pela cisão das palavras, que encerram o entendimento da realidade...
Estagna-me a razão, repugno neste instante toda filosofia, toda ciência, pensar qualquer coisa é inútil, incompreensível, tudo já está dado a priori, as respostas estão todas nas mãos de alguma moral ou ciência - o mutirão de símbolos!, como poderia resultar em outra coisa senão em 2, 1+1? Achamos isso na realidade ou inventamos? A vida não é um argumento, sussurra os latidos na rua, berra a criança chata que não vejo em algum lugar a incompreensibilidade do mistério de coexistir que me espreme o intelecto no simples mover-se das nuvens e escutar de passarinhos. Toda a vida passa por mim como o sussurro de um grande "em vão", ecoando na alma o canto do bem-te-vi que vem de muito longe por baixo dos barulhos de carros.
Às vezes sinto falta de uma alma religiosa, uma nostalgia de infância, qualquer uma; de uma moral, da segurança desta; de afeto materno, de um pai celeste; a carência de um santuário para prostrar-me de joelhos e entregar o fardo de minha angústia intangível nos ombros de alguma verdade; poder ter a fé que se tem os santos e todo ser que imagina compreender e conhecer de fato algo. Ter a fé simbolizada neste mesmo nada em que estou caindo, mas envolto pela crença em alguma coisa para sustentar-me. Mas não! Estou cego e louco, minha fé é cega e minha razão é louca...
Parece que a mim me foi dado o não ter chão nenhum, nenhuma convicção, nenhuma certeza sentida, intuída, racionalizada; perdi o chão quando as palavras perderam a força na crença de sua significação.
Cai a tarde como uma pálpebra cansada por sobre a fronte sonolenta do dia, durmo de olhos abertos com a alma forrada sobre a estagnação das horas idas. Sonho a vida na minha consciência de a sentir no bulício com que me enche os ouvidos o canto dos passarinhos. Com a razão estrangulada e a fé perdida, até minhas dores são de outra ordem, sofro sempre singularmente, por isso nada me consola. Sobra-me, então, apenas a arte para expressar-me esta cela em que coexisto com o mistério do mundo...