É o caralho
"Foi na Cruz, foi na Cruz, onde um dia eu vi, meus pecados castigados em Jesus", dizia a canção entoada pelos devotos na calçada da casa, no meio da rua, e ela, de longe, no bar cu de cana da esquina, vestida com um saia curta, a boca borrada de batom, brincos grandes nas orelhas, uma tiara amarrada na cabeça e uma enorme flor saindo das orelhas aos olhos. Sentada a mesa, uma meiota, observada por outros tantos ali bebendo, quando mais forte feio a canção "Foi ali, pela fé, Que meus olhos se abriram", ela virando uma dose de cachaça, descendo rasgando dentro de si, e no goto, as palavras saindo de dentro dela como se fossem fogo:
___ Não existe um deus em mim, apenas o espaço do vazio preenchido com o vapor de minhas ilusões___ Cuspiu no chão, ao lado dos pés ___ Não existe uma oração desde que tive de arrancar de mim meus dois peitos, tirá-los fora, deixá-los na lixeira da privada na obrigação de dizer adeus!
Os gritos de louvor eram acentuados, ninguém enxergava ninguém diferente naquela noite. Cada um na sua. A lua para todos, mas nada ligava as pessoas naquela rua. Ela abria a blusa , botão por botão , ia deixando as marcas dos peitos a mostra e mais um gole, mais uma dose escorrendo pelo canto da boca.
___ Apenas um eu travestido de pintura e cheiro barato, espera, o ônibus, puta merda, passou e nem pude acender meu cigarro, passou como se fosse a velocidade da vida e tenho que ser obediente aos transtornos dos outros, outros?
Existia nostalgia naquelas palavras. Pôs os dedos nos ouvidos, não queria ouvir o hino insistente falando de pecado, espremeu a cabeça entre as pernas e um grito alto, muito alto nascia de si naquele momento...
___ Ninguém nem está aí para nada, veja bem ela, ali, jogada naquela calçada, a rapariga sai de casa pra ganhar cacau e acaba toda de mijo na roupa, cheia de mosca...
Uma moto barulhenta vai passando, acelera, passa veloz e jogam ovos certeiros no corpo da puta jogada ali, na esquina, cheia de mijo e moscas. Os outros riem, escancaram a boca enquanto a moto some pela escuridão da rua.
___ Vai rindo, caralho, que o seu caralho nem serve para mim, eu tenho é uma gilete debaixo da língua, se vier eu golpeio seu rosto, faço estrago pior que os meus, pior que viver de esmola, sem nenhuma escora e ter de aguentar calada as dedadas dos outros...
De pé, abriu as pernas e mijou, mijou demoradamente enquanto tirava um chiclete já mascado do cós da saia e passava a mascar novamente. Sorria com o mijo descendo nas pernas, escorrendo pela calçada, chegando ao esgoto que corria ali mesmo. Os que observavam, alguns sorriam, outro jogavam palavras e tantos pegavam nos sacos e pediam para enxugar. Ela levou a mão com a saia e passou a esfregar a carne minada.
___ Outro dia tava era de faxina na casa da madame, passei foi um pente fino numas coisas e dei beijo em outras, saí de gatuna e nunca mais voltei, mas a peste nera de sarro de um de farda, foi a conta e ainda teve de vir me ver e dizer que deus tivesse pena de mim. Deus o caralho, eu que tenho pena de mim, do caralho que sou porque não pude por os dedos no meu nariz na hora de nascer e já nascer abortada, tá no lance? Pois se ligue aí que tou ligadinha em tudo.
A música sessou. Nenhum som mais falando de nada e alguém pedindo música ao dono do bar. Alguém sentando na mesa dela e pedindo um cigarro, um trago, um beijo, um sarro. Nada. Um vento frio descendo e subindo em sua espinha. Um suor detrás da orelha e o olho encarando o olho da frente de si. Pegou do cós da saia a carteira de cigarro. Tirou um, mordeu o filtro e deu para o homem sentado à sua mesa.
___ A porra da minha mãe tomou até um chá, mas sou do caralho que fiquei oca dentro dela até ser despejada, depois largada na casa na puta que me criou e eu de porra aqui, nessa meleca fedida como se fosse um esgoto supurando catinga e a peste bem vestida vem me vender sermão para poder sacar no bucho um punhado de sopa e pão em nome de deus, deus é o caralho, sacou?
De pé foi a mesa vizinha, pediu fogo. Acendeu o cigarro e tragou fortemente. Toirou por completo a blusa e pediu atenção de todos.Dançou sozinha enquanto fumaça. Acendeu mais um cigarro, arranjou parceiro, não quis, dançou mais sozinha e depois foi sentar.
___ E se achar ruim que me caia o dedo da unha roída e toda a dor que ninguém conta nem mede, mas me mete o dedo querendo me cegar.
Naquele momento, o dono do bar sapeca um balde de água debaixo da mesa dela, lavando a calçada e os pés dela. Uma revolta, uma sensação ruim com os pés molhados, lágrimas nos olhos e música nos ouvidos... "Precisa de ti muito mais que as estrelas..." e a sensação dos balanços da rede enquanto uma voz cantava, embalando o seu sono. Lágrimas nos olhos, mais um copo virado e uma senhora ao seu lado a fazer um convite... "venha, é a hora... ".
___ Eu tou cagando pra tudo e por tudo, tou de chicotada, até tiro a saia, quer ver? Sem a saia é mais caro, não tenho mais peito, mas a carne é boa, sou de jogar fora não, qualquer pinga a gente pimba numa boa, e num frio desse, abro as pernas de fácil se a neca do ocó for de boa, não tiver cheiro de jaula ___ Sai da mesa, não escuta a senhora parada ali, senta no colo de um, aperta o saco de outro, faz gesto obsceno com a língua
___ Nossa, faz volume assim só para impressionar, mas vá de reza para outro altar, nesse aqui não tem incenso nem fogo para acender vela, depois você me lembra o filho da puta que lacou a minha mãe, me plantou dentro dela, se foi, nasci, virei gente, criada debaixo de muita surra e castigo, porque fizeram um favor para não me verem morta, mas nunca me senti viva e fui varada pela primeira vez pela odara do meu pai de sangue sem saber e nem me venha com esse papo de salvação porque prefiro que me tragam aguardente para preencher os vazios de alma, enquanto eu caminho, vou escalando por aí os... Espera, espera, o ônibus nunca para, esse com o nome de cordeiro de deus! Cordeiro de deus o caralho, a cabra velha que sou eu que devo, com os pés cheios de calo, sair por a ir chifrando o tempo para ver se vejo o sol quando se despedir da lua...
Sai correndo por uma rua estreita, sem ver nem enxergar a si mesma. Um clarão, uma escuridão, os pés cortados, as pernas cansadas, suor no corpo.
Deitada sobre papelão, na praça, arranhado a carne das coxas com as unhas, um vulto, um desejo e algumas palavras:
___ Vai me lascar ou não, boy margia!