Silêncio por encomenda
O meu pai me bate. Eu choro no meu silêncio debaixo da cama, meu corpo dói, a carne fica marcada e eu tenho vontade de matá-lo.
Aprendi no catecismo que é pecado, porque está escrito nos mandamentos de Deus que devemos honrar pai e mãe!
Ele diz que eu não sou filho dele, sou filho da minha mãe e do capeta, que vai embora e eu vou ficar com ela.
Meu pai me bate, eu choro muito, minha mãe pede para eu ter paciência, que ele é nervoso, mas me ama. Ele diz que não!
Meu pai me bate e diz que tinha vontade de ter filho homem para ser macho, não uma peste molenga que nem eu.
Outro dia, achando pouco as pancadas, ele pegou um martelo, estirou minha mão na mesa e martelou todos os meus dedos só porque eu calcei os sapatos de salto alto se minha mãe, coloquei um pano na cabeça e fiquei brincando de cantar de frente para o espelho. Fiquei todo mijado, sem jantar naquela noite, além dele me trancar no quarto com a luz apagada. Sinceramente eu não entendia o que tinha de errado em mim.
Ele me odeia, minha vó me disse, disse também que ele tem um espírito maligno, que eu devo rezar muito a Deus e todos os santos.
Outro dia, chegando em casa, fui ao quarto de minha mãe e peguei ela chorando. Vi no colo dela o nosso álbum de recordação, meu pai tinha pego uma tesoura e tinha cortado todas as fotos da gente, ele não queria mais um filho que gostava de brincar com meninas e tinha comportamento afeminado porque os amigos ficavam tirando sarro com a cara dele.
Eu chorei porque vi minha mãe chorar. Fiquei triste e um sentimento muito ruim cresceu dentro de mim: se pegasse aquela tesoura, eu arrancaria os olhos dele.
Ele saiu e ficou vários dias longe de casa, nossa, desejei que ele nunca mais voltasse. Minha mãe fez bolo de chocolate, bexigas e cantou parabéns para mim. Foi o meu melhor aniversário, somente eu e ela. Ficávamos juntos um tempão e na hora de dormir, a gente dividia o mesmo cobertor quentinho.
Não durou muito tempo, ele voltou, trouxe presentes para ela e para mim, a gente foi ao parque da cidade e brincamos na roda-gigante. Estava tudo bem, comemos pipoca e algodão doce, até que ele quis que eu fosse nos carros, eu não quis, preferi ir no carrocel, percebi que o rosto dele mudou, o humor também...
Meu pai não entendia que eu tinha apenas dez anos de idade, não tinha pedido para nascer, não ouvia os sons que ele produzia, nem som algum, mas sentia dentro de mim o que era do agrado dele ou o que não era. E eu, não contava?
Ele fez as escolhas dele: viveu, conheceu a minha mãe, casou, teve um filho, torcia pelo time dele, reunia os amigos lá em casa, fazia minha mãe triste e também a fazia chorar! Por que eu não podia fazer minhas escolhas?
Meus mundo era construído pela vontade dos outros, faltava a mim a audição, mas os sentimentos eram maiores que o Meu peito de criança.
Meu pai me bateu com tanta força que meu corpo não aguentou. Dolorido, senti quando me levaram para o hospital! Eu tinha um gosto de sangue na boca e meu corpo não se aguentava em pé. Minha mãe chorava em desespero, o médico até tentou me reanimar!
De olhos fechados, percebia que meu corpo ficava na maca enquanto eu podia voar... Aos poucos, minha respiração foi ficando fraca, eu tentando abraçar a minha mãe, ela sorria para mim enquanto dizia: vai fazer falta, meu filho: você, seu sorriso e seu abraço. Eu chorava por ver a minha mãe chorar. Não resistir, meu pai me bateu tão forte que meu fígado estraçalhou todinho.
Meu pai chorava muito, mas eu não conseguia ter pena dele, ele me bateu porque, porque, porque...