Sinto suas vozes ecoar...
Sinto suas vozes ecoar como brumas na substância imaterial da minha consciência; ouço-os, os incógnitos, como um cego ouvindo rádio. São para mim espectros do meu sonho desperto, vozes incômodas que gorjeiam sem gargantas, murmúrios espumosos de mar, impressões da exterioridade ordinária, imprevisíveis dramas que se desenrolam na minha consciência de os sentir. Sinto-as com a distância de atenção como de quem vai lendo poemas pela rua e tem de olhar para frente, distraidamente. São para mim extensões de minha coexistência com o mundo, o cosmo exterior que a consciência de os sentir não pode deixar de torná-los consciente para mim. Sou apenas palco, me vejo coexistindo em um personagem, num mundo verdadeiramente fictício. Estou como uma pedra solta no espaço, que se pudesse pensar acharia que é ela própria que está se movendo livremente.
Somos todos, talvez, no trajeto de nossas vidas, rascunhos de histórias incompletas, canetas com que se escreve a vida no livro da existência até que acabe a tinta. A vida como um teatro onde contamo-nos a nós mesmos nossa própria história, vivemo-la; e a ironia é que, de fato, nada é nosso, nem nossos corpos e almas. É tudo exterioridade sujeita ao movimento dos corpos, versos escritos nas folhas do tempo pela mão do Mistério, sonhos que vivemos acordados. Somos borboletas que nascem e logo morrem...
E eu, junto da humanidade, interiorizados em nossos sistemas de crenças, simbolizo estas palavras com a sensação de que, ao ouvir os transeuntes a matraquearem na minha consciência, se não era isso que Cristo tentou dizer ao morrer na cruz: quando disse que o Reino estava no coração - na alma, na interioridade simbólica da consciência de os sentir como extensão de si. Por isso: "amem o próximo como a ti mesmo"?...
Ouço-os tagarelarem sobre coisas que não entendo, e não sinto como Cristo a ternura pelos meus irmãos em que se nos ancoramos em nosso próprio contentamento, ou diria - compaixão? Na verdade suas vozes me incomodam, não tinha intenção de escrever estas coisas que escrevo agora! Violam-me o mundo próprio, roubam-me de mim mesmo. As coisas se interpenetram umas nas outras, compreendo Cristo e o Reino, mas se acreditasse em Deus talvez eu não sentisse tanta pena de ouvi-los. Sem Deus a vida é o que é, nem moral nem imoral, não há substrato das sensações, nem solos firmes para se sustentar, o devir é imperecível e a mudança a essência da alma. A alma é o mundo que conhecemos, e nós nascemos da extensão do que existia nesta alma...
Não creio em Deus. Tudo se segue, é só o que se sabe. Não tenho o solo macio da compaixão para trancafiar meus demônios. Sou afetado a todo instante por impressões que borbulham no meu sentir. Falam todos juntos sobre qualquer coisa de final de semana, e o que entendo me faz pensar algo que logo desaprece; interferem no meu sono, mudam meus sentidos, são coadjuvantes do meu sonho, e sem que eu queira, parte de mim mesmo também...
Como a natureza é dura e implacável, indiferente à nossa sensibilidade, porém leve, perdoável, sensível também! Nem uma coisa nem outra. Vazio. Mas é a estética da existência, a sua exterioridade, como numa borboleta, que é sua santa justificação e livramento do aspecto pessimista que ressoa no ar de nossa natureza. Pela Arte e não por Deus é que a natureza é absolvida de seu aspecto brutal e pecaminoso. Não é que eu ame-os diretamente, amo-os à distância de um olhar analítico de quem vê quadros. Todo o mundo externo é para mim uma paisagem em que me vejo dentro pintado pelo Eterno Artista Cósmico. E é com arte que, sem negar o que de fora me chega, que faço do mal que este me causa minhas humildes prosas, usando do incômodo para falar nele, e das vozes incômodas para meus versos sonhar.
São para mim, as vozes sem donos, neste fim de reflexão, lembranças da minha tragédia de coexistirmos...