Um dia cinza e amarelado

A luz que entra pela janela oscila entre amarelo e cinza nas paredes brancas do meu quarto; nuvens sem paradeiro vestem o rosto do sol que não vejo num passamento contínuo. No céu há uma agitação de uivos e sopros agressivos. Ventos sacodem as sacolas lá fora, folhas secas se arrastam no ver dos meus ouvidos. No ar gélido há um poeirento cheiro de coisas antigas, qualquer coisa de nostalgia, lembrança de outra vida vivida num outro tempo da alma que não me dou pela causa, mas sei que é cheiro de ventos antigos, de um outro eu que sinto no farfalhar das folhas que giram no quintal a brincar com minhas sensações.

Abre-se do pêndulo de luzes amarelas e cinzas um amarelão de dourado translucido, clarão de dia, e o sol sorri nas paredes acentuando as manchas que não via. Como se refletisse do mundo para mim abre-se-me na alma, como um livro, outras nostalgias de outrora vidas idas. O sol que doura o branco vai enchendo-me de coisas que não lembro, sentindo apenas os fantasmas das minhas vidas. Deixo de ver o sol quando estou a sentir nele as histórias de minha alma, a todo tempo meu ser é bombardeado de imagens pelo mundo no qual coexisto como um mundo individual que, no fundo, é o próprio mundo.

Mas paro, sinto observando, e...

De repente, como no automatismo das paixões, sou outro, olho para minhas sensações com desprezo e ironia, por isso bate-se em mim a vida que me vivo como uma mentira. E vejo como se caísse dos olhos uma venda, o sol na parede. Simples luz pintando meu quarto de branco vivo. Nada de sensações, apenas a simples percepção do que é.

Vejo-me claro como o dia, tempestuoso como os ventos, agitado como as nuvens que começaram de novo a esconder o sol. Estou com o coração no acontecimento, como o fundo de um espelho dos barulhos e estalidos inauditos - um silêncio cheio de barulho. Logo escuto o que antes não escutava: os transeuntes a falar nas ruas, o som metálico de coisas no ar, os passarinhos a passar a vida cantando, o vento soprando nos telhados, o ar gelado, o peso do corpo, tudo! Envolvo-me ao uivo no céu e derramo a alma sobre a vida que à minha volta me cobre com seu encanto. Fico a sonhar coisas que não são minhas, imagens que não quero ver, sons que não quero ouvir, como quem sonha lúcido e sabe que tudo é sonho, e por isso quer apenas continuar a sonhar.

Em instantes orquestra na alma o palco de toda uma vida: passarinhos cantarolando; ventos e mistérios de vozes que aparecem no ar; sol tímido que não sabe se aparece ou não, e vou deixando de ver as coisas como são, perdendo-me nos meus sentidos inflamados de imagens e sons, em minhas fantasias, delírios de não saber se sou senão o chão da vida onde todos pisam, o fundo no qual tudo é ouvido no mais completo silêncio.

"Transito entre a verdade e a ilusão como intermédio de dois mundos que coexistem em minha alma"

Fiódor
Enviado por Fiódor em 21/08/2017
Reeditado em 02/05/2020
Código do texto: T6090663
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.