O Louco
"E fala aos constelados céus
De trás das mágoas e das grades
Talvez com sonhos como os meus...
Talvez, meu Deus!, com que verdades!
As grades de uma cela estreita
Separam-no de céu e terra...
Às grades mãos humanas deita
E com voz não humana berra..."
__Fernando Pessoa
Tu, coração, terras de ninguém, por que não se atiras logo ao mar e afoga-te nas águas que tu mesmo chorou a vida inteira? Vale mais dormir a vida e sonhá-la que iludir-se do nascer ao morrer do sol, pulando de sonho em sonho que se esbarram contra o mundo como vidro no chão. Quem dorme esquece as mazelas no qual se nos verga o peso do viver, como caules de mato ao sopro do vento. Assim dorme na inconsciência as flores que vergam sob o peso da chuva.
Quero dormir, também, a consciência da vida, esquecer-me que há universo e pessoas, ficar abraçado a mim mesmo e ser um quarto silencioso cheio de mundos misteriosos, perigosos e longínquos, cores e poesias de nuvens que levam heróis aos céus, choro e lágrimas de fantasias só minha, manicômio da inocência perdida. Dorminhar na alma sonhos dramáticos, magoar sem magoar ninguém. Construir vidas e senti-las todas, como um roteirista - ser sem doer como dói a coexistência. Ser rude e amoroso, misto de contradição; ser bobo-da-côrte e rei, donzela e carrasco, mãe e pai; tudo isto eu, que sou sonho, apenas eu - o dono de terras inexistentes e dizeres populares nunca ditos. Viver com amigos imaginários num universo onde tudo é preenchido pelo mistério da minha imaginação.
Há de um dia, é possível, beijar-me a alma este sono - que é o sono dos loucos -, e quando vir, se vir, o terrível silêncio de quem se partiu d'ali sem se despedir, e só deixou como fato existente apenas o olhar estático e um corpo malsão que pulsa sem alma, não estarei mais aqui, como quem morre, e a alma fica errante numa terrível eternidade cheia de si, um mundo inteiro sem ninguém...
O louco rompe o fio das memórias para descarregar-se do peso que este carrega no coração; se não mata-se, assassina: - então, sua última fuga é o sono na loucura, onde a verdade e a mentira, a ilusão e a realidade, a vida e a morte tornam-se substância da alma, filamentos de sonho. Sem consciência como as nuvens e as flores, com a diferença destas que este verga-se sobre o próprio peso, o louco -
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