Intimidades 634
E assim me arrasto pelos cantos da casa em ruinas. Alongo-me pelo olhar e piso a esmo o que sobra da antiga vida. Estás em todas as coisas que se partiram, nos livros que a humidade apodreceu, nos objetos que, em silêncio, ainda te evocam. O resto é lixo de muitos dias, desacertos, mágoas, desavenças, o sangue que correu da tua boca como uma blasfémia e eu à espera da morte que nunca chegou. Por isso ainda ando a penar pelos espaços, cansado de ver, sentir, palpar este vazio denso que é a marca dos meus dias enquanto se não esvazia o tempo do meu corpo ou as imagens que vivem sem que eu as saiba no fundo dos meus olhos. Sou, neste regresso, a voz do amor, o escrito amarrotado do ciúme, a falta de ti e de lume, o anoitecer dos espantos por onde há pouco era banal a hora amarga. Vieste. Sinto que estás aqui. Ou nem chegaste a ir totalmente e o que tenho a representar-te são lembranças, aromas velhos, a sede que nenhuma água sacia? Estás onde ficam a apagar-se todos os que desistem mas a nossa história tardará a juntar-se ao entulho que retirarão a seguir. Porque eu ainda vivo.