Ressaca das águas

Bêbada de sentimentos.

Sem álcool,

Sem qualquer droga legal ou ilegal.

Sem sapatos ou juízo.

Sentada na sargeta de uma calçada desconhecida.

Banhada pela luz amarelada dos postes, misturo-me à ela no cenário da madrugada.

Impeço as lágrimas, não posso derramar mais água ou alma. Estou longe do mar, é preciso guardar cada gota que resta, antes que só exista pedra.

A lua, bem acima de mim, me observa e me acalma.

Decoram a noite, morcegos, ventando pelo ar seco e estagnado. Há também, um muro de uma casa desconhecida em minha frente, com os números 2,0 e 8 o compondo; algum terreno baldio ao lado e qualquer praça pela esquina.

Quebram o silêncio, o som de cães, gatos e o canto de pássaros da noite. Além do rugido de metal de uma janela que se fecha, uma lata de lixo que encontra o chão e um ou outro carro que tocam o asfalto.

3:00h.

O frio, o cansaço e o medo trazem-me à realidade.

Grita o corpo e suas necessidades.

É preciso movimentar-me, buscar calor e um lugar para dormir.

É preciso levantar e calçar os sapatos, antes que pés e mãos desconhecidos me enxerguem na rua deserta, antes que a lua desapareça e eu perca a invisibilidade.

É preciso resgatar toda e qualquer força que faz pulsar o sangue. E caminhar.

3:30h.

"Como queria encurtar a estrada, achar uma ponte, já estar em casa", é tudo que consigo pensar.

Mas não há atalho ou pontes.

Não é possível apressar a chegada. Ou saltar algum pedaço. A única forma é passo por passo.

A ansiedade não vai me colocar no meu destino.

"Se meus pés pararem, não chegarei onde desejo estar", é a única certeza do momento.

Um passo e depois o outro.

O calcanhar direito sangra, dói.

Desligo as horas e sigo. Chego.

Lavo os pés, as mãos, o rosto e adormeço.

Ressaca.

Acordo com uma enorme ressaca de pensamentos. Drenada.

Visto minha armadura e uma máscara qualquer, desgastada, já rasgada.

E lá se vão os pés novamente, caminhar pelos ponteiros do tempo, nos corredores das obrigações. Cansados sim, mas de uma torta forma, livres. Passo por passo, no compasso sem graça dos dias.

GISS
Enviado por GISS em 10/08/2017
Reeditado em 09/06/2023
Código do texto: T6080153
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