Para pessoas feias...

Minha cabeça entra nuns redemoinhos ferozes às vezes. A maioria é um conjunto de vozes na minha cabeça avaliando sem nenhuma delicadeza meus gestos, meu corpo, minhas palavras...

Há mais ou menos uma semana atrás, estava afogando-me num desses, no ônibus, indo para a casa da minha tia. Na minha cabeça, os juízes debatiam minha feiura\minha beleza. Buscava provas já antigas e amarelentas de que era sim uma moça feia, que as pessoas apontavam a moça feia andando numa rua feia de forma feia sendo feia e tudo o que eu dizia ficava mais feio porque era dito por mim, uma pessoa feia. Ficava imaginando as descrições que já devem ter feito de mim por aí usando essa palavra. Se as pessoas sentiam pena disso, como sentem pena de um cachorro sarnento. Se minha feiura é tolerada por aqueles que me olham.

Sempre que entro nesse debate feiura/beleza eu tento me lembrar que não existe uma categorização certa para isto, óbvio. Vou ser feia pra uns, bonitas pra outros, e como diz minha mãe toda vez que me vê triste em frente ao espelho, somos mais bonitas que alguns, mas mais feias que outros. Ou, às vezes, eu sou feia, mas bonita numa moldura de uma cama, bonita rindo de uma piada suja, bonita lendo um livro com as pernas no sol, bonita pensando que sou bonita, mesmo que seja feia.

Eu fico olhando as meninas no ônibus. As meninas que não devem se sentir bonitas, e são lindas, e são lindas no ônibus, com olheiras debaixo dos olhos, suas espinhas lindas polvilhadas no rosto, bonitas distraídas, com fones de ouvidos enfiados fundo, muito sérias, são lindas, e nem sabem, e vão chegar em casa, arrastando esse machucado pra lá e pra cá, querendo arrancar pedaços do próprio rosto, do próprio corpo...

Enfim: mesmo me esforçando para contradizer tudo isto, eu perdia a batalha, debruçando finalmente um peso enorme e horrendo nos meus ombros, finalmente aceitando o fardo de todo elogio direcionado à mim seria uma mentira. Mesmo assim, descendo do ônibus, sorrio para uma velhinha extremamente fofa vestida de vermelho e de olhos azuis brilhantes que desce ao meu lado, e segue o mesmo caminho que eu. Pergunto para onde ela vai, e ela diz docemente que vai descer a rua que eu mesma desceria. Propus que então iríamos juntas, e fomos.

Logo, parando um pouco na beirada da calçada para a passagem dos carros, nós nos damos as mãos naturalmente como se tivéssemos parentesco, e eu só conseguia pensar na minha avó, que andava comigo assim e sempre dizia para tomar cuidado com as motos, ''nunca confie nas motos'', dizia ela, e eu conto essa anedota da minha vó para ela, e ela diz que concorda.

Atravessando a rua, ela começa a jorrar contos e causos, como qualquer velhinha com quem se puxe conversa nos ônibus, e me conta que faz parte de um grupo de meditação para senhoras. Ela me diz que todas elas sentam lado a lado, fecham os olhos, e pensam: sou perfeita como Deus me fez, linda como Deus me fez, saudável como Deus me fez...

Eu fico muda e me esforço para não cair em lágrimas. Parecia uma contra-resposta instantânea para aquilo que eu havia aceitado como verdade e como sina pouco antes de tocar a calçada e sorrir para ela.

Ela continua me contando: quando tem um momento difícil, ela diz que tem vários, porque tem filhos e netos, e nenhuma avó suporta ver os netos sofrerem, ela se aproxima de uma imagem da Nossa Senhora que tem em casa, e olha fixamente para ela, por uns vinte minutos, sem intervalos. Ela diz para Nossa Senhora: Olha, minha Senhorinha, sei que a Senhora já sabe do que passa por aqui, e sei que a Senhora vai resolver, então eu só agradeço...

Ela me mostra onde mora, apontando para um prédio rosado, e se demora nas descrições. Me diz que minha mão é uma delícia de pegar, macia, e se ri muito falando disso, numa doçura que eu ficava me perguntando se era miragem ou não. Digo para ela que fiquei um pouco emocionada com o que ela havia dito, e que eu estava precisando ouvir exatamente o que ela disse. Ela me diz que ficou muito feliz por eu ter sorrido pra ela, e diz repetidamente: você me deu atenção! Geralmente, pra velhas como eu, não dão atenção...

Nós demos um abraço longo e nos despedimos. Nos abençoamos fortemente, e cada uma foi por seu caminho, mais linda do que pouco antes, no ônibus, perfeitinhas como somos.