Estafa
Eu nasci a planger ao universo meu mais novo desvario: a vida. Já fazem mais de três décadas que ancorei neste submundo chamado mundo e deixei de cintilar lá, do outro lado.
Nasci de um dessarranjo, de um desalinho, de uma transfuga, desci para cá a espavorir, desci (se é que estava no alto) num mês de março, cuspido pelo propósito demoníaco de um criador bondoso.
Minha missão nesta vida é deixar a desejar, e isso faz bem, todo dia cumpro a missão a mim confiada. Prometi a mim que ninguém vai deixar tanto a desejar quanto eu. Algumas décadas a mais e estarei a beirar o retorno para o outro lado, ainda falta um bocado, mas já deixo transparecer minha estafa.
Originei-me na dança de um verbete divino (ou diabólico) e voltarei numa contradança humana; hei de ser decisivo ao menos no meu retorno, já que até agora nada decidi; vim com uma missão pronta, lembra (?), deixar a desejar.
Estive meditando sobre qual a melhor maneira de deixar a desejar neste texto inútil que redijo, e depois de pouca reflexão, ao ler o que está escrito, vi que serei novamente louvado pelo plano etéreo, pois, em cada palavra aqui escrita, em cada maldita palavra aqui escrita, eu deixei a desejar, e como deixei. Não há razão para elogiar o que aqui está posto, vez que a estafa já tomou minhas mãos; mãos estas que nunca titubearam no cumprimento da minha mais elevada missão: deixar a desejar, e isso faço bem, e como faço.