CANSAÇO
CANSAÇO
Cansei de poemas de amor. De flores. E borboletas.
Meu olhar nublou os rios. Acinzentou águas que correm fugidas de azul. Esfumaçou florestas de ideias e ideais. Escureceu os sóis em esperas frias. Em esferas vãs e tortas. Escondidas debaixo de capachos parados nas portas. Cansei dos suspiros de esperança. Sossobrando nos telhados da fantasia. Assombrando os campos verdinhos de brotos. Moles. Pendidos. Perdidos de mim.
Cansei de remendar discursos. Recortar falas. Colar encantos onde a onda leva. Cansei dos mares infinitamente salgados de letras trêmulas. Cansei de sobreviver de sobressalto em sobressalto. Atropelando alegrias ingênuas e nuas. Pulando espumas e temendo as marés.
Cansei das frutas doces. Das laranjas-lima. Amarelinhas de lembranças. Suco de criança. Criança anjinho. Que se abre em sorriso quando o sino dobra.
Cansei dos meus olhos espiões de ternura. Piscando tempos de ontem. Nas pálpebras de hoje.
Cansei das vontades desfeitas. Uma a uma no fantasma do susto. Desabençoado. Desacreditado.
Cansei da velha carroça de sonhos. Enferrujando os amanhãs com seus desassossegos. Rangendo carícia áspera. De um querer nem nascido. E já esquecido.
Cansei. De acenos e cenas. Das coisas grandes. Das coisas pequenas. Das faltas. E das falas que faltam. Cansei disso tudo. De tudo isso que virou rotina. Que virou dias e noites. Que invadiu horas a fio. Num sinistro uivar de um cão. E a lua, nem aí. Cansei.
Cansei de acordar sem ter dormido. Um minuto sequer. Debaixo de cobertas. Que não fazem outra coisa a não ser acobertar e desfazer.
Só não cansei do Bem-Te-Vi. Passarinho da minha infância. Piava e chovia.
Passarinho mentiroso duma figa! Hoje em dia, pia. E não chove.
Mírian Cerqueira Leite