COSENDO VIDA
Ela cose a vida. Junta tecido, linha e agulha e costura o tempo. Molda no corpo a roupa e dá forma à fôrma. Ela cria e recria. Enquanto cose, coze. Da cozinha vem um cheiro bom de um biscoito assado. Na casa das três mulheres ela é o pai. E sempre que se pisa naquele lar há um senão de uma presença oculta. Parece que vai surgir de algum lugar um homem bem facejo chamando a esposa porque uma cliente espera na sala. Não vem ninguém; ela é viúva. A ausência masculina é presente. É como se o pai estivesse ali, em algum cômodo desocupado. Ela é pequena e de muita fragilidade. Sob a pele branca, de certa transparência, surgem veias saltadas. Nas mãos, no pescoço quando se anima ou se exalta. Seus cabelos espessos, cacheados. Sempre presos estão. Fios brancos aqui e ali denunciam a idade. Há uma tristeza em seu olhar; talvez de ver a vida passar sem ter vivido algo desejado. Assim como eu quando penso em certos desejos deixados para trás. Aquela tristeza que a gente nem se dá conta que sente, até que começa olhar no espelho de um jeito diferente. Ela se anima quando chego, se anima com as roupas que invento. Ouve minhas histórias e ri, me acha engraçada. Seus olhos brilham diante de um novo projeto. Ela é como eu, ama o que faz. Distrai-se trabalhando. Eu fui assim, sou assim; distraí-me da vida no trabalho. Vi a vida passar fingindo estar ocupada, quando eu não estava; estava mesmo é entretida. Delicada, corta, alinhava e põe à prova. Nem sempre é disposta a consertos. Se ponho um reparo, ela demonstra agonia. Gosta de criar, costurar, terminar e entregar. Sem voltas ou retornos. Sem consertos ou emendas. Eu também sou assim; faço bem da primeira vez para não fazer outra vez. Ela viaja nas minhas viagens; sempre pergunta: _Tem pressa? Vai viajar? Eu sempre corrida, atrasada para um evento, uma festa, uma viagem a planejar. Outro dia, ela contou toda contente a viagem que fez, e de como reencontrou um ex-amor. Não deu outra, lembrei-me imediatamente da música do Martinho da Vila. Aquela que foi o suficiente para uma pulguinha se instalar atrás da minha orelha e antecipar o inevitável fim. Mas, são águas deveras passadas. Eu sou totalmente musical, dê-me uma palavra e lhe dou uma música. São os traumas da infância quando a família se distraía com o Silvio Santos. Bem, voltemos à história do ex-amor e o reencontro e tantas coisinhas do passado dela. E pela primeira vez eu não era a protagonista. Fiquei observando-a. Ela se parecia comigo. Igualzinha. Espevitada contando uma aventura. Tudo era tão singelo e de tão grande beleza por ser tão simples, pareceu-me aqueles filmes antigos da sessão da tarde. Fiquei encantada e ela feliz. Engraçado como me vejo bem caseira. Ora cozinhando, ora bordando, costurando umas coisinhas. Acho tão femininas essas prendas de mulher. Que as feministas não me escutem (como se eu também não o fosse). Sustentar uma família com uma prenda feminina é muito revolucionário. Esse poder do lar, do privado, da manufatura é transformador. De repente, ela me anunciou toda orgulhosa: “_Minha filha vai estudar Direito” E vi na história delas a minha e de minha mãe. Na mesa ela abria os papéis e riscava os moldes. Muitos pensavam que minha mãe cosia panos, quando na verdade, ela fazia planos. Depois, sentava na máquina de costura e se punha a pedalar. De tão rápido, parecia que ia voar. E, voou. Levou-nos para universidades, empregos, cidades, para o mundo. Quem não teve uma mãe operária jamais conhecerá o sentido do vencer pelo próprio saber.
P.S.: Memórias de hoje...
1- Meu aluno: "Vou denunciar você à Previdência, deve tá mentindo a idade...rs" - o jeitinho deles me elogiarem; vou sentir saudade.
2- O que uma pessoa me ensinou: "Quando uma pessoa faz muita força para te colocar pra baixo é porque você tá muito por cima. Continue assim" Adorei!
3- My "Teacher" fazendo reverência pra mim na correção dos exercícios e o coordenador me elogiando no corredor, ou seja, estou realmente indo bem. Rs.
CONCLUSÃO: Várias alternativas positivas anulam uma negativa!!!