Horas Prístinas
Um cheiro orvalhado de saudade penetra em minhas narinas como água em guelras ressecadas, ressuscitando momentos só meus. Momentos em que à, beira de meus abismos, me estendo imensa de ternura, de lonjura, de imensidão, de estendal imprevisível, alargando minhas profundezas. Enxertando em minhas raízes um útero natural propício ao desenvolvimento da vida que sinto latejando, passarinhando a beleza que brota em meus galhos com essa universal substância, restumes de pólen e olhos vermelhos com lágrimas selvagens, dessas que não há registro nos léxicos, mas tem tudo pra ser altar, liames primordiais preparados para a vinda de primaveras, bichos e pessoas com língua-escamas e plumagem de aves na garganta. Nos túneis construídos pelas correntezas de olhos de regato, onde nada mais acontece: desacontecem; brota um frescor de nascente virginal, sufocando o mormaço de nuvens esvaziadas com cachos estacionados...
Respiro fundo e vislumbro, por cima das pupilas de nuvens de rouxinóis, o silêncio investindo contra outras nuvens esculturas que enchem de entardeceres a luz do dia. Nas cordas nubladas da flora, as notas ganham som de cachoeiras, de sinfonia regida por um maestro com ar altivo de coisa preciosa indefinida. Em um desses cantinhos sem nome próprio, os jardins ainda sobrevivem. Percebo que o rumor das pequenas margaridinhas brancas não cessa, já que é ele que alimenta o enevoamento armado pelo tempo nessa estrutura de chover. No corrimão empoeirado das horas, vou deslizando as mãos distraídas em caracóis e assusto peixinhos lilases que nadam no reflexo do espelho d'água, entre algas azuis e caramujos jovens, sobreviventes de incêndios crepusculares que vieram espojar-se no frescor dos limos com olhos reluzentes de Aurora. Um desses reflexos que ensinam a ser verdejar translúcido como o silêncio cor-de-rosa espumoso das marés.
A mim parece um sacrilégio que seres tão mágicos só existam dentro de mim, nessas notas líricas entre meus suspiros e soluços. Os luares andam nus à beira da vazante de olhos mar(ejados)... são hábeis observadores, conhecem tudo pelo toque. O resto tem olhos inúteis que só se movem ao som fúnebre do tilintar dos ossos da imaginação. Aqui me perco e só desvendo-me com a pena em punho ao escavar o subterrâneo das palavras e alcançar a nascente límpida. O canto silencioso que brota nas profundezas das horas prístinas.
(Edna Frigato)