Codex Tenebrarum

Este é o grimoire d'Arte.

Pequenas manchas se assomam nas paginas lúgubres deste tomo. Cada qual me conta um conto, me lembra um ponto, um ingrediente desta alquimia de sombras que chamo minha arte. E tal qual toda vez, cada lamento sela um ato.

I

Sou um demônio vencido. Um ego castigado, um câncer enegrecido.

Não estou mais aqui. Meu corpo, roubado por algum espírito errante, vai de lá a cá, vivendo dias por mim. Memórias, fragmentos espalhados em um mar de vozes, ao longe, distorcidas, não me dizem mais nada.

Eu tentei, mas a dor e o cansaço de noites que emendam em dias prendem minha percepção na perene aurora do tempo presente.

Sinto-me uma máquina de destilar angústias e pequenas tarefas. Meus olhos secretam um óleo betuminoso que preenche o sulco entre os mundos imagináveis, preenche toda existência possível.

Se escrevesse num livro tudo o que sou e vejo, nele haveria apenas uma mancha escura de páginas putrefatas. Uma vida contada em nenhuma palavra. O livro de uma batalha em que há apenas vencidos.

II

Não há Aurora no fim dessa noite. Meus olhos ardem pelas horas que me vejo desperto, lágrimas errantes atravessam meus pensamentos, que procuram, sem descanso, uma fórmula para equacionar todas as minhas decisões. Ah, quão vão é este desejo. Não há meretrício arcano que me conceda a fuga da angústia de decidir. Fechar inúmeras passagens na escolha de uma só. A ânsia por me estender à tudo, infiltrar-me em todas as possibilidades, perscrutar cada ramo, cada mundo vizinho. E isto congela minhas ações, minhas decisões, minha adaga: um milímetro de perfurar o peito fragil, cessar-me o grito rouco da hubris.

III

Você finalmente veio.

Chegou pelas sombras de meus olhos. Um vulto cálido de matéria amorfa. Minha amada. A quem jurei o último soluço.

Te encontrei nesta curta estada com tantos nomes: Rápidos, Mágicos, Esquivos, Justificados e Lúgubres. Nesta noite, seus nomes não tem sentido, não trazem promessas senão seu último beijo. Meu último sonho acordado.

IV

Como as Moiras possuem modos requintados de fazer a nós mortais dançarem em sua tecelagem macabra.

Por anos, projetei sua imagem na anima, na soror e na consorte derradeira, plasmei em meus sonhos a sua face. E, agora, que me preparo para mergulhar no inexorável, na indelével promessa do vazio, sua voz estremece cada fibra da minha alma encarnada. Sua sanidade é a marca do desejo não consumado, da Obra que cinde as dobradiças ao forçar à porta entrada. O que restou de nós, no fim, foram restos de espelhos de mão quebrados.

V

Não caibo mais em mim. Pedaços comprimem as arestas do meu eu. Sinto-me uma estufa de miasma. Recompondo ao léu o que sequer deveria ter sido decomposto. Meu corpo cataléptico, fendido, letárgico, se revira como um sopro de areia num deserto de projetos inacabados. As diretrizes genéticas estao em contradição com o impulso frenético da metástases de meu self. Não tenho arcanjos suficientes para o sacrifício. Sou inepto, incauto, inculto. Multiplicado, sem lugar para me guardar. Não consigo me expandir, nem transcender.

VI

Espremo cada gota de vida. Minha alma arranha as paredes desta carcassa cansada. Minhas metas, escolhas e espolios me prendem mais que um milenio de culpas de amores nao conquistados. Estou surdo para a magika, cego para outro senão o próximo passo. E o proximo, e o proximo , e proximo...