ENTRE O LANCHE O JANTAR, ESCREVO.

Entre a hora do lanche e o jantar, escrevo. Às vezes, levanto e vou dar uma olhada no prato que preparo, pois escrevo e cozinho. Escrevo para testar comigo mesma o conselho que dou aos meus alunos: é escrevendo todo dia que você aprende a escrever. Ainda não aprendi, por isso escrevo. Assim como ainda não aprendi a cozinhar por isso todos os dias preparo alguma coisa. Mas, existe outro encantamento no ato de escrever e cozinhar. Talvez, seja o tiquetaquear do teclado ou a música que coloco ao fundo que me faz viajar. O cheiro dos temperos, o toque dos vegetais. Eu vou ordenando as palavras uma a uma e, tal um crochê fino, algo se forma e eu gosto. Também na panela coloco os ingredientes pouco a pouco e em pouca quantidade, marinando num suco muito tenro e saboroso que serve para umedecer a carne e espalhar o sabor por todo prato. Escrevo para me entreter, para ocupar o vazio das horas que passam ligeiras, num flerte, enquanto meu olho salta do teclado para a tela. Se eu soubesse digitar sem olhar, seria algo realmente incrível, pois fecharia meus olhos e veria as imagens tomando corpo ali em frente. Cozinho porque sinto saudades de minha mãe. E é tão forte e intensa a dor que sinto que desejo reencarná-la e ora penso que eu sou ela e ela está em mim. E repito seus gestos rápidos, seu corte preciso, seu silêncio pacificado preparando o jantar. Escrevo porque sinto saudades do meu amado tão perto do coração e tão longe do meu olhar. E, às vezes, me pergunto se ele existe mesmo ou é, tal qual esse desenho dele, um personagem que criei. Invento a minha vida entre o computador e o fogão. Podem dizer o que quiserem as feministas de plantão, eu acho um charme estar na cozinha e comandar a alquimia dos sabores. E, simultaneamente, dedilhar no teclado uma história qualquer, um relato, uma lembrança ou argumento. Assim, dissipo o mal de uma mente vazia e quando um pensamento ruim se avizinha eu não me culpo por tê-lo, mas não o adubo deixando-o crescer, não. Limpo a minha mente, escrevendo sobre o bem, o amor e o presente; esse agora em que existo e protagonizo a minha história. O fogo aquece a panela aos poucos, cozinho em fogo baixo, devagar. Afinal, eu não vou para lugar algum e nenhum lugar. E, o som da pressão assoviando me parece um trenzinho a viajar. Viajo também. Levo comigo o cheiro gostoso do frango caipira invadindo a casa, o cão dormindo e a chuva a cair. De repente, vejo tanta beleza em minha vida, que sabe aquele pensamento ruim, perde o sentido e se dissipa. Sou abençoada por ter Deus em mim e, sendo Dele também posso criar, mesmo que seja no meu teclado, o meu singelo tear. Pronto o prato, provo o caldo. Saboroso, leve, temperado, um tantinho adocicado. Volto – o para o fogo, quero-o mais apurado. Vou esperar contando uma história, conversando com alguém; um alguém sempre imaginado, por mais que o queiram real aqueles que me leem. Lembro-me do dia, do batizado, da irmã, do afilhado, de mim no passado distante e presente. Penso em quem se aborrece consigo mesmo e tenta me aborrecer porque eu não me aborreço mais. Paro nesse pensamento e nele me atenho um instante e reflito: foi assim que tantas pessoas saíram da minha vida. Volto ao teclado, toca “Carpenters” e que suavidade e paz ela me traz. Isso é uma terapia, me tira de mim e me tira a agonia e, nem mais sei por que sofria. A panela recomeça o seu vaguear, eu acompanho daqui olhando pela janela as luzes de Taguatinga. A noite chegou e a música que está tocando é “Close to you”, compreendo alguma coisa, mas não tudo e desejo tanto que você estivesse aqui e traduzisse cada verso para mim como a Mônica fez noutro dia. Eu queria entender todas as línguas do mundo e compreender o que dizem as pessoas no momento de amor ou aflição. Mais alguns minutos e estará pronto o prato; agora alto está o fogo. O cuidado deve ser dobrado. Às vezes, as coisas estragam pelo excesso de calor que a intimidade provoca. E lá se vai o que seria um bom prato, uma bela amizade ou um romance apaixonado.

Adelaide de Paula Santos em 08/02/2017, às 00:14

P.S.:Não se aflija pelo pensamento maldado. Sim, pelos desacatos que ele tem provocado.

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 08/02/2017
Reeditado em 08/02/2017
Código do texto: T5905963
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