A Desova

Peguei no chicote e forcei pelo cabo o destramelar da fechadura. Com a porteira aberta deixei disponível para o mudo o uso da fala, para trazer para fora o pus, dores antigas que nos dias ficaram cabeludas e dali à calvície incomodando o juízo.

Não resisti a nenhuma história que intencionou sair de dentro . Olhei nos olhos do emudecido oferecendo a ponte para a passagem dos contos, fatos e atos que viveu. Foi acordando um a um: tristes, cruéis, insidiosos, lascivos, hostis, felizes, outros nem tanto, luxuriosos, masoquistas, opulentos, envaidecidos,miseráveis. Por mais bizarros que eram, ouvi. Deixei fluir, correspondendo na compreensão através do olhar compassivo dirigido ao narrador.

Estabeleci na situação preparada para não alterar nem a posição das sombrancelhas, fiquei de telespectadora.

Doei meu olhar ao interlocutor como fosse mediadora em causa própria, somente para deixá -lo sentir liberto, compreendido, perdoado por si mesmo, aliviado das aflições colocadas por si em seu arquivo, apropriadas da vitrine egoísta do mundo.

Afinal, essa vida é pronta, quando chegamos aqui ao nascer a encontramos como fosse um ovo, com o bom e ruim dentro, e continuaria sendo, sem fundo nem buraco. Olha que encontramos pelo no "ovo"!?

"Essa vida é um buraco n'água", como diz mamãe.

Márcia Maria Anaga
Enviado por Márcia Maria Anaga em 07/02/2017
Código do texto: T5905428
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