Menos de mim

Menos de mim está aqui

neste instante repleto de coisas

que me são estranhas

Não entendo o enquadrado

que assim se sujeita

porque dizem que causa menos dor

Não gosto da dor

mas insuporto a submissão

Outro dia

um dia qualquer da vida

me deparei horrivelmente triste

Uma mulher, velha, chorava o filho que se foi

As lágrimas rolavam, só isso

Me dei conta que amanhã ela não estará

E quem vai chorar?

Um cachorro late

Um homem fuma

Uma jovem desfila pela avenida

E o garoto de programa

exibe seu corpo na vitrine viva

Menos de mim está aqui

neste mundo de aparências

e flores de plástico

Gosto de orquídeas, e Ipês, e jasmins

Salsinha, coentro, também gosto

Quer vir para o jantar?

A carta não enviada

repousa sobre a mesa

à espera de palavras

Não há destinatário

para o presente esquecido

na loja de conveniência

Tudo se calcifica

como se tempo e corpo

fossem relíquias paleológicas

Vem pra cama, meu bem

diz o marido à esposa

que cozinha depois de um dia extenuante

E, então, o que resta?

pergunta o paciente ao médico

que lhe dá a sentença dos exames

Flores brotam

num jardim abandonado pelo morador

Mesmo ele já não habita a casa

A carta não enviada

repousa sobre a mesa

à espera de palavras

Quantas sensações

deixaram de serem vividas

porque se esperou

pelo momento que nunca veio

Menos de mim está aqui

nesse instante em que escrevo

essas palavras para, quem sabe,

um dia, uma criança as leia

Eu fui essa criança

que encontrou na rua

uma carta abandonada

por alguém que nunca conheci

e que só dizia: eu existi