[Bebendo a Solidão: Tristeza Boa de Sentir]
Há ironias e ironias; ninguém, por seu próprio querer, entra nas brenhas da vida; o mistério é, sempre será, o por quê de, onde devia haver mais dois, às vezes, faltar um degrau, justamente aquele... Mas, falando de ironias, recordo-me de umas que nem são ironias, são carinhos alegres, brincalhões, que guardo até hoje, e repasso, se posso, aos meus filhos... ah, se eu pudesse de novo sentir aquela mão benfazeja na minha testa!
Jovem, o mundo todo novo, zerinho, zerinho, só pra meu desfrute, eu chegava em casa de madrugada, bêbado, passando mal, querendo lançar, e tinha de atravessar a sala cheia de cadeiras... Por que é que havia de ter tanta cadeira na sala... Tropeça aqui, esbarra ali, no que me restava de lucidez, eu ouvia o rangido da porta do quarto de minha mãe, e aquela voz de quem já sabe de tudo:
— "Carlinho!"
— ... senhora, mãe... sou eu, tô aqui...
— Já sei, já sei; o Rex é que não podia ser! E estou até vendo como!"
— Ara, mãe, eu só estava na praça, com uns amigos... nem num fui na zona não...
— Ainda bem que não foi, senão, amanhecia por lá, escornado de tanta bebida!
E enquanto eu lançava na copa, na área, pois nem tinha dado tempo de chegar ao banheiro, lá vinha ela, apressada, com a ternura daquela mão macia na minha testa, para me amparar... Volteio nas pernas, olhos lacrimejando, mais lançadas, agora no quintal mesmo, e ela, sorrindo, gozadora:
— Tá vendo?! Tá vendo só?! Bebe cão, bebe cão! Até parece que nasceu primeiro que a bebida!
E agora, aninhando meu rosto naquela mão curativa:
— Ah, mãe, nem foi tanto assim... só umas cervejinhas...
— Como é que não foi?! Como é que não foi?! Com efeito!
E já no conforto da cozinha, punha-me sentado no tamborete de couro, o meu preferido, e então, eu via os alumínios brilhando, brilhando... e tome chá amargo: calunga, boldo, losna masgaiada na água fria, o que dessas coisas estivesse mais à mão! E as goladas de chá, descendo, amargando tudo, amargando de estremelicar o corpo inteiro! E enquanto levava a chávena até a minha boca:
— "É pro fígado, bebe tudo!
— Nossa mãe, o fígado da gente gosta de coisa amarga assim?...
— Ara, menino, vamos bebe tudo! Amanhã, tá novo; mas vê se aprende, se não cai noutra! Onde já se viu, beber tanto assim?!
E ajuntava rindo, rindo como quem sabe separar o grave da coisa à-toa, como quem se lembra de que também foi jovem, e sabe que o filho está longe do perigo:
— ... vê se toma jeito; olha que o seu tio "Ôncio" morreu de cirrose!
Ah, que saudade, que saudade... de uma mãe assim calma, que se levantava de madrugada, sem cara feia, sem zanga, rindo, brincando com a bebedeira do filho jovem! A minha mãe não pintava as coisas de feio. Via naturalidade em tudo... criou-me sem gritos, sem sustos!
E aquelas madrugadas na cozinha, como esquecer? Tantos anos e ainda me lembro do brilho dos alumínios, enquanto eu tomava aqueles chás da minha mãe! E que fenomenologia estranha é essa que há no brilho das coisas de uma cozinha da casa da infância, o que é que faz esta lembrança permanecer assim, nítida em minha mente? Saber as mãos da mãe operando maravilhas, gostosuras com aqueles utensílios simples? Será? Será? Ou saber a amargura que era a de, às vezes, em tempos difíceis, não ter com que enchê-los? Antes de morrer, eu queria entender a fenomenologia do brilho dos alumínios da cozinha da minha casa-infância, aquele que vi naquelas madrugadas... em contraponto, os cães latindo para o sem-fim do ermo da cidade adormecida.
E hoje, quando vejo este mesmo brilho, tenho 99 anos e estou só, sento-me à mesa da cozinha, e vou bebendo, bem devagar, um vinho tinto... sem os exageros de antigamente, além de não ser o caso, é claro, a minha mãe não está mais aqui para me acudir! Amigos pra essas horas, não tenho não; nunca tenho; eu bebo a minha solidão, só a minha solidão... devagar, bem devagar, sem sede de me matar.
Ara, tudo visto, estrada acabando, já me desfazendo do farnel, e a régua já quase passada, num será essa uma tristeza boa de se sentir?! Pois se mistura a tanta coisa... tanta coisa... Até que é!
[E olha que eu nem disse nada, nada não... só miolo de pote!]
[Penas do Desterro, 02 de agosto de 2007]