Um dia na cidade
Posso entrar? Eu gostaria de poder olhar para a cidade lá de cima da sua janela.
Eu gostaria de enxergar as formigas apressadas lá em baixo.
Olhe para mim, eu posso subir a escada.
Apesar do cigarro ainda acompanhar os meus passos, ainda tenho um pulmão saudável.
Estou bem. Com a música sempre estarei bem. Outra vez bem, quando tudo estiver mal.
Deixe-me entrar. Quero enxergar os idiotas de cima. As casas onde se escondem.
De lá e onde for eles parecerão insignificantes.
Mas eles não sabem disso, eles nunca sabem. Sempre estão certos acerca das verdades.
Eles não sabem que as folhas das árvores caem.
Deixe-me entrar. Lá de cima verei todos os crimes, preconceitos e intolerâncias.
Verei os piores bandidos e mentirosos. Câmara e igreja, respectivamente.
Deixe-me entrar. Quero ouvir minha música e ler meu livro lá de cima.
Olha, diante de todos os meus problemas você é o que mais odeio.
Eu sei que lá de cima verei as escolas caídas lá no fundo.
Lá de cima tudo estará sujo. Aqui de baixo tudo parece tão limpo.
Muitos estão jogados no chão olhando para a parede.
Eu quero mais uma dose para me sentir bem.
Uma formiga fora da trilha? Quem já se viu isso? Baixe a câmera.
Deixe-me entrar. Lá de cima verei os banquetes de lixo.
O jornal disse que está tudo bem. A rua está limpa, as escolas estão educando, os livros estão sendo lidos, e todos estão ouvindo a sirene das fábricas, essa é a vida.
Porque não tomemos um café?
Antes de entrar gosto de tirar os sapatos. Me sinto mais leve.
Eles lá em baixo são pesados, fruto de dinheiro escondido no bolso e na cueca...
Sem açúcar. E lá, sem comida no prato.
Durma com a luz acessa, janela fechada.
Não, sem coberta e apague a luz.
Alguns não têm cama.
Quando criança a punição era ficar sem TV.
Hoje esse castigo não vale para os senhores de terno.
Vândalos e invasores! Rousseau gostaria de ver.
Vou acender o cigarro e queimar os olhos dos cegos, talvez eles consigam enxergar as mentiras.