POLUÍDOS
Vi o rio, puro brilho em seu leito, sob a luz fina do sol.
O corpo em arco armei, estendi os magros braços...
______Vou relaxar bem meu corpo, respirar e mergulhar!
Rasguei o espelho d’água, tocando a areia, no fundo...
Impregnar-se o frescor, senti sobre a pele em brasa
mas um murmúrio estirado, feito arrocho de goela,
obrigou-me a emergir e abrir os olhos, atônito...
___ Ô menino, joga lixo em mim não, me deixa limpo...
dou-te água fresquinha, pro banho...
potável, para beber...
dou-te peixes, aos cardumes...
para matar tua fome...
não deves envenenar este meu útero grávido!
___O rio está falando, me contando das riquezas
do seu bucho intumescido?
Ah, já havia esquecido que o rio é como eu: VIVO!
Seu poder é incomum...
é ele o provedor de toda a vida na terra,
pois sem água nada vive!
Mas qual, quem já ouviu rio falar?
Estou ficando é demente...
ou com febre... doente de fome e medo!
Estou é tendo visões...
___ Conheces estes meus filhos? (pergunta, orgulhoso, o rio)
Vem, vou te apresentar:
Aquelas lá, são Traíras, matronas, dente afiado
feito estaca de marfim... ferozes...
quanto mais velhas, mais gordas,
maiores, carne macia e branca...
mas cuidado com as espinhas...
parecem delicadas rendas, tecidas em Salomé!
___ Aqueles, tão ligeiros quanto tu?
Ah, são os Acarás, deles deriva o teu nome,
filho meu _ ACARAÍ!
Iguais à mãos espalmadas
cortando o frescor das águas...
brilham, chapéu de reisado,
todo enfeitado de espelhos!
___ Olha as garras dos Pitus, limpadores do meu ventre...
suas pinças são enormes, serrilhadas e cortantes
podem causar talhos profundos...
sei, te fazem salivar, no imaginado prazer
do bocado mastigado...deglutido com tesão...
numa roda de amigos... tarde quente, de verão!
____ Elas são lindas, não são?
São Tilápias, lépidas... prenunciado
deliciosa iguaria, mesmo ainda com escamas
sujas de lama e gosma
deslizando em tuas mãos
tentado furtar-se à sorte... tua mesa!
____ E as Piabas(lambaris)?! Sambudas de comer tanto!
Prateadas, mais parecem estrelas no céu diurno
desfilando no meu leito, que
transvestido de materno ventre
se aprofunda... se estira...
prenhe de amor e fartura...
¬¬¬____ Olha lá, meus dinossauros, os Acaris...
parecem dormir, abufelados nas pedras!
O beiço largo, colado, suga com sofreguidão...
o limo nutritivo do lagedo submerso.
Dentro da armadura pedregosa
desse seu corpo jurássico, engorda... serenamente!
____ Vê, são eles, os Jundiás, de longas “barbas”
parecendo mandarim chinês?!
São primo-irmão do bagre, do mandim e também do tubarão.
Deslizam ariscos em águas claras,
Mas quando escuras fazem-se afoitos...
Prato como poucos, saboroso, macio feito beijo de amante!
____ Aqueles lá? São Piaus!
São os monges tibetanos que vivem
em minhas águas, gostam muito de silêncio...
nele encontram a perdição: teu anzol de pescador.
Para comê-lo rezas uma prece, ajoelhado...
Agradecendo a Deus, iguaria tão ímpar!
____ Ah, lá vem elas, minhas oncinhas pintadas,
os Sabararus, gordos, deliciosos
fritos, feito escabeche, no côco, na brasa...
acompanhado com salada de agrião...
feijão tropeiro quentinho, à sombra do cajueiro.
Em uma tarde de sábado, ouvindo viola caipira!
Senti uma lágrima na face e o grito que se ouviu,
pareceu urro de fera antediluviana...
ferida...enjaulada, escravizada...
já sem forças pra lutar.
____ Rio/Mãe, isso aqui não é lixo, sou eu Acarai...
é que o mundo do “mais forte”, me transformou em um trapo...
humano, mas em farrapos, minha dignidade? Negou!
Emprego? Nunca oferece, só me obriga a votar,
quando chegam as eleições...
sem escola, me tapeia com esmolas....
ao bandido dá sustento e direitos mais que humanos,
a mim? nenhuma opção...
tirou a minha camisa pra comprar seus paletós...
com andrajos me cobriu...
não sou lixo como pensas, mas eles acham que sou!
Deixa-me refrescar o corpo,
pra esquecer que sinto fome
causada pela cobiça, prima/irmã do desamor!
O rio parou seu curso, se ergueu do leito e chorou,
mostrando-me com amargura
que também o transformaram
em um trapo sem valor,
coberto de excrementos, refugo, lixo, dejetos...
o que muito me assustou!
____ Onde está o rio da minha infância? Eu o vi, ao mergulhar...
____ Sonhaste. O rio que conheceste, na aurora da tua vida,
está morrendo contigo – canceroso, pestilento, apodrecido... faminto...
e o poder do qual falas, nada pode contra mim...
morro, mas não sozinho...
tenho garras, navalhas de sangue vivo...
“tu perdoas algumas vezes, és um homem!
Quem perdoa sempre é Deus”, mas eu Acarai,
não perdôo, nunca!
Enovelados: rio, homem e dejetos,
encosta abaixo desceram rumo à cidade, ao mar...
e mergulharam no caos!
____ Ai meu Deus, me ajude!
(Ouvi-me gritar... acordei!)
Ufa, se isso é um sonho, nunca mais quero dormir!
Me olhando a sorrir, minha mãe disparou:
_____ Comeu pirão e dormiu, pesadelo te pegou!
Tá suada feito tampa de chaleira,
menina, tu precisava de ver
as mungangas que fizesse!
Faz isso não, comer pirão e dormir
Pode te dar congestão... pesadelo aproveita...
____ Congestão, mãe, eu não tive
mas garanto pra senhora, que se hoje
eu avistar alguém jogando lixo
nas águas do Paraíba
dou-lhe um susto tão da gota
que é pra ver se ele aprende o caminho do lixão!
Agora estou acordada... vigilante...
Na minha vista, garanto,
aqui, ninguém joga lixo mais não!