Segunda dose de tóxico

Tenho comprado brigas que não são minhas. Tenho torcido os pés de minhas vergonhas para expor meus mais doloridos nervos. Tenho comprado brigas que não são minhas. Tenho comprado, comprado, comprado caríssimas telas em branco e tenho as jogado fora, tecido por tecido: eu não valho um grão da poeira que assenta sobre essas telas. Eu rasgo as telas e desisto de ser qualquer coisa. Eu tenho pagado preços altos demais por ter aleijado emblemas próprios, distorcido ideias, lacerado sensações, por tentar adentrar realidades que nunca foram minhas nem de minha finura. Eu tenho vestido véus para cobrir minhas feridas. Eu que sempre enfiei o dedo nelas, as feridas, em público, eu que sempre sangrei por gosto – porque o vermelho me faz os olhos rutilantes em cores que eu jamais conheci até então... Então eu esqueço os cadernos perto de uma garrafa aberta de conhaque e ao lado há um isqueiro. Pela primeira vez eu sinto medo de que, por um acidente, tudo que eu tenho e que me faz lembrar de mim vá por água abaixo, por fogo acima, por conhaque em partes e num todo desapareça enquanto pisco os olhos e o dia acorda. É preciso que eu lide com essa realidade: eu tenho medo. Eu duvido, cambaleio, tropeço e caio sem pudor – as quedas me trouxeram aqui, não meus pés: meus pés me traíram, as quedas é que, verdadeiramente, me trouxeram até aqui.

Ai de mim que sei rastejar, ai de mim se não o soubesse.

Taíse Dourado
Enviado por Taíse Dourado em 28/11/2016
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