Na penumbra de um quarto
Ignus Fatuus

Jogada sobre um colchão sem lençol, não usando mais travesseiro há dois anos por conta de um traumático torcicolo. Sinto o gosto de sangue escorrer pela garganta, rumino esse sabor metálico só para ter a certeza que vivo. Apesar do meu diafragma subir e descer não acredito mais na ideia de vida. Asfixiada em um quarto apertado, cercada de livros que larguei mesmo que estivesse interessada. Garrafas e latas de cerveja se acumulam debaixo da cama, tirei o colchão e joguei no chão. Cansada do cotidiano, passei a dormir com as baratas. 
 
(a única solidão é a morte 
mas não esta morte 
não esta morte 
não 
esta
morte.)

Meu rosto está inchado e dolorido do último procedimento cirúrgico no dentista. Extraiu-me o último dente, lá no fim, aquele maldito dente que não deveria estar na arcada assim como eu não deveria estar no mundo. Às vezes não passamos de dentes sisos apodrecidos, você também sente isso? Do computador vem o som da voz de Bukowski declamando algum poema que fala sobre abandono, desgosto e alcoolismo. Nos últimos meses ele é tudo que me resta, um velho moribundo e enterrado. A poesia me salvou, arrebentou a corda que tinha enrolado no pescoço.

Farta da fantasia recorro à podridão do dia-a-dia, me resfolego nisso como porcos no chiqueiro. É bom aqui, é sufocante, quente, mas tenho um ventilador de teto que roda, roda e não provoca vento. Às vezes estamos apenas rodando e rodando no mesmo lugar, tenho certeza que também já sentiu isso. Converso com esse velho rouco que declama suas poesias, as divagações existem só na mente. Estou há muito tempo presa nesse ambiente, por mais que me mova e saía por aí, que encontre conhecidos e vá comprar minha cerveja, a verdade é que meu espírito não sai mais desse quarto. 

Em algum lugar li que o "isolamento que me impus me levou ao que tentava fugir". É como um cão atrás do próprio rabo. Olho em volta na penumbra do quarto ao cair da noite e tenho um relance dos anos em que passava atarefada com coisas inúteis. Todo tempo dedicado aos estudos, trabalho e amizades que hoje em dia sequer recordam meu nome. Sinto uma fisgada assim no entre os peitos, onde deveria estar acoplado um coração que parece inativo. 

Daqui uns dias não restará nada sobre o colchão além de uma ossada. Já não me alimento, tenho minhas cervejas, tenho minhas lembranças ruins e tenho Bukowski falando sem parar no computador. Quão solitária pode ser uma pessoas? Procuro em algum lugar dentro do meu corpo a energia necessária para me levantar e seguir adiante, descubro que o estoque está vazio, esgotou. Sou um cadáver que ainda respira, anda e fala. Quão desgraçada pode ser uma pessoa?

 
(que seja conhecido 
que a solidão é a única 
misericórdia
e a única 
amante
que seja conhecido 
que um homem não precisa ser Cristo 
para ser crucificado 
que seja conhecido 
que um homem pode ser 
crucificado
a cada dia 
a cada momento 
a cada respiração 
de sono e vigília 
e então ser atormentado novamente )

Sento-me e sinto a bunda ossuda afundar no colchão macio. Meus cabelos cobrem o rosto descarnado. Lá fora escuto alguém bater a porta de um carro, esqueci-me até mesmo quem mora comigo. Como são seus rostos e nomes. Acho que estou desaparecendo na penumbra do quarto, pois estico as mãos e não vejo nada além de sombras. Balanço os dedos, estão em movimento, mas não há vida. Penso em sentar na escrivaninha e usar a máquina de escrever que comprei com tanto esforço, mas ela não me chama mais, não sinto vontade de escrever ou de ler, o cinema perdeu a força também, a música não passa de um incômodo sonoro. Perdi tudo o que me fazia seguir.

(que seja conhecido
que saber sua própria morte 
é morrer duas vezes
uma vez realmente 
e então, quase nada 
que seja conhecido 
que não há nada tão feio 
em tudo que é tangente
como a besta humana 
um truque definido contra o sangue de sua alma )

Do pó ao pó, como um dos móveis empoeirados do meu quarto, passo a fazer parte da mobília. Baratas vagam entre minhas pernas, nunca me senti tão íntima de outro ser vivo como delas, por isso as tomo nos dedo e as observo, deixo que caminhem em meu rosto. Do pó ao pó. A monotonia pode destruir uma existência, "- você sabe disso, tenho certeza -", falo na direção de Bukowski no computador. Porque todos aqueles que me entenderiam jazem em covas profundas nas memórias do tempo. Nasci abortada em um tempo errado, para pessoas assim só resta a melancolia de uma morte diária lenta e dormente. 

(a única solidão é 
sono ou morte 
nós não éramos inteligentes o bastante
gentis com os outros e cruéis para si mesmo
quando pedimos a nós mesmos por misericórdia 
e isso foi negado)
 
Larissa Prado
Enviado por Larissa Prado em 27/10/2016
Reeditado em 27/10/2016
Código do texto: T5804498
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