Saudade, Dita

Ah, que dor é essa fora de hora?

Mas, dor marca hora? Que eu saiba, nem costuma avisar.

Acho que é a sofrença, o tempo em sua cadência, uma tristura qualquer.

Neste caso, não é bem assim. Nisto tem muito de especial. Eriçam-me os pelos, aguçam-me os sentidos. Conheço este cabecel. És tu, madona, não és? Ainda agorinha pensava em ti e em como tudo era melhor com você.

Ouvia suas estórias sobre Peixe-vivo, Mangaba, Cabelo-louro. E você, mal se lembrava de Galante, o português e já fazia girar um fado. Começavas por Mouraria, tão bem chorada por Amália e com ela entoavas: “Ai mouraria, do homem do meu encanto, que me mentia, mas que eu adorava tanto...”. Mais um pouco, tomada d’um certo ar vianense (quando acho que lhe vinha à mente a figura do dândi), me revelavas: “se o meu sangue não me engana, como engana a fantasia, havemos de ir a Viana, ó meu amor d’algum dia”. Eras romanesca, dona!

De repente, como num basta, te transmudavas e lá se ia um trio para a agulha, extraindo d’uma sopro-madeira um “bate-chinela”, um “for all” miudinho e bem ritmado, muito ao seu gosto - (nem precisa convidar, dá-me esse prazer). De quando em vez me corrigias: não é assim não, menino; é mais “sacudidinho”! Isso: é desse jeito, garoto. Trem “bão” é coisa boa, dizias. E ria. E ríamos. Dali para “Sous le ciel de Paris, com Giraud ou Mauriat, era só trocar o vinil.

Que saudade de você, dona Dita!

Hoje eu te abraçaria mais forte que nunca. Por empréstimo, te tomaria o colo para sonhar os sonhos que não seriam; lembrar as coisas que jamais foram; brincar de ter só para gozar; fingir um poder de não chorar. Sabe, o que é bom devia durar muito e mais um pouco. Eternamente, talvez e mais um dia. Por que esse enguiço aneurismal que fendeu não tamponou? Um berne, um necator, uma Zica que fosse, a gente espremia, tomava vermífugo e chá macela-do-campo para curar o “amarelume”, tomava água dormida no sereno e comprimido para tirar a dor, mas a gente curava, dançava e ria, não carecia olhos que marejar.

“Eau de toilette?” Ué, este cheiro é seu!

Desmorreu dama da noite? Voltaram os pintassilgos e os beija-flores?

Devaneio meu: bem podia apenas ser você.

Liga não, mãe!

Daqui até aí é um pulinho, um susto. E eu já me vou pelo caminho.

Compre broa de canjica, faça biscoito de nata ou pão de minuto e passe um café ralinho. A vitrola eu levo. É breve que a gente volta a dançar!

Eustáquio Leite
Enviado por Eustáquio Leite em 25/10/2016
Reeditado em 21/11/2017
Código do texto: T5802946
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