O silêncio da sereia (Ouvido da barcarola)
Apaixonei-me pelo teu canto e sofro em silêncio.
Você nunca está, ficam as dúvidas sinto-me como um amante traído.
Me manténs cativo e não abandonas teu marido.
Meus dias são longos... Longos são teus cabelos, sou frágil.
Frágil como raízes de plantações de trigo.
Sem pá, enterro o sentimento e o cubro de angústia.
Minh’ alma vaga sem querer conduzir o corpo, te procuro.
Será que ela saberá voltar para ele...
Sem matar-me e viva.
Vaga...
Rogo.
Volte minha sereia... Ainda vagas pelas trevas desse rio escuro?
Ou se sustenta no ar como moeda lançada, a cara e a coroa se fundem.
Jogada num poço, flutua e depois desaparece n’ água escura.
Lentamente com a cara para baixo.
Derrubo um suor que cai ao lado do poço.
O calor é intenso, tremo com a evaporação.
Corro, subo sem calma à velha torre sem luz.
Nunca houve um farol por aqui.
Lanço rede aos peixes celestiais.
Claros, lisos, escuros, escamosos, espinhas, espinhos balançam.
Se quebram, caem; lábios balançam sob a sombra da boca.
Feita de barro terrestre, tua boca que se aproxima.
Dentes estelares brilham e bailam ao pé da colheita celeste.
Ceifa-se o trigo, num salto percorre-se a plantação cósmica.
Conheço a fazenda de cima, vejo o rio que a nutre.
Da aldeia, ao lado das linhas de arame...
Vejo a poeira, ouço o caminhão chegar.
Lotado e invicto, nunca perdeu uma batalha para os braçais.
Freia e expira, propagandeia sua chegada com uma densa nuvem de poeira.
Pivôs desligados, a lama vai secando do outro lado da cerca.
Lá, plantas muito verdes nos darão grãos em breve.
No céu, formam-se raízes elétricas...
Primeiro os raios, depois trovões.
O céu escurece num tom azul-preto-claro.
A Terra toda escurece, as nuvens vencem o Sol.
Treme a memória, raios invadem o rio palpitante.
O cenário é lindo e o que canta morrerá.
Quem não canta voa para seu abrigo, se vai flutuando no ar carregado.
Ao longe ecoa o sino, avisando que já são seis.
Parece noite, ainda é dia... O Sol furou a nuvem baixa.
Canta o sino, canta o beijo, canta o amor.
Cantemos juntos ao som da tempestade elétrica.
A barcarola¹ chegou e se atraca na margem do rio.
Neruda nos chama, acenando com a mão.
E os amantes, de mãos dadas entram n' água e sobem à barcarola.
Vá primeiro meu amor... Estou logo atrás, olhe para frente!
¹ “A Barcarola” (1966) é um livro de poemas de Pablo Neruda (1904 – 1973).