ESTACIONAMENTO
Eu não estou aqui, não existo. Eu sou um gás. Fui caindo para dentro de mim e lembro-me vividamente da queda; não havia no abismo uma borda em que eu pudesse me segurar. A queda me deixou nu. A queda era a nudez. Evanesci lentamente na sombra. Não ouvi som algum, então talvez ainda não tenha atingido o solo, mas já me perdi de vista. Eu não estou aqui. Eu me confundo com a palavra. E a palavra é uma inimiga. A palavra é a alucinação de uma mente estupida e megalomaníaca. A invenção de um animal que se viu como um Deus. Incapaz de tocar a realidade (ela sempre lhe escapa por entre os dedos – que, aliás, também não existem), mascarou-a em abstração. Percebeu, em sua genialidade (porque a despeito de sua estupidez, o animal é, de fato, um gênio), que a abstração era encapsulavel. Inventou a palavra. Encantado, acreditou na palavra. E se fez por ela. E inventou o mundo com ela.
Mas eu vejo a cegueira. Li “ESTACIONAMENTO” pela janela do ônibus que me trazia para casa e percebi ali a mentira da palavra. Não há estacionamentos. Estacionamentos são obras impossíveis na realidade real. Um estacionamento é uma palavra que serve para guardar outras palavras. Eu sou uma palavra. Mas se eu coubesse em um estacionamento, talvez a frágil trama do mundo se rompesse, e eu evidenciaria o vácuo de tudo e daria inicio ao fim dos tempos e faria da Via Láctea a colina de Megido e o céu se abriria e por entre as nuvens em brasa = cairiam palavras. E restabeleceria-se-me a ordem. E todos fingiriam que nada havia acontecido. E mesmo no jornal das seis, não haveria sequer palavra sobre o ocorrido.