Vórtice de solidão
 
"Essas palavras que escrevo me protegem da completa loucura."
(Charles Bukowski)
 
 
Continuo deitada enquanto a luz do dia vai embora projetando sombras estranhas através das cortinas entreabertas do quarto. Tenho problemas com essas cortinas que não bloqueiam de todo a luz do sol, sempre acordo muito cedo, não suporto a claridade que faz meus olhos abrirem. Nunca fui de suportar muitas claridades durante a vida, nasci para a escuridão das noites, um animal notívago e perdido. Se me exponho muito ao sol, me queimo de morte, falta borbulhar a película suave que é minha pele. Toda estranha, assim me sinto nesses dias em que tudo se torna apenas uma sucessão de mesmices, nada de novo, os mesmos enredos e personagens, nada muda além dos cenários. Eu sinto que o teto para o qual olho diariamente vai desabar sobre mim. Ele chega próximo o suficiente do meu rosto para me assustar.

O corpo não quer se mover apesar da mente dizer que há tanto o que fazer lá fora, mas as ruas, as pessoas, as rotinas, tudo isso não parece mais dizer respeito a mim. Nada me pertence, nem eu mesma. Reflito sobre questões que ninguém mais estará pensando em todo mundo, todos estão ocupados com as pequenas euforias de suas vidas. Me sinto muito pequena no meio da cama desforrada que não faço mais questão de ordenar. Há verdadeira solidão aqui, acumulada de anos e anos e com ela estabeleceu-se o tédio em existir. Antes conseguia ao menos entrar no jogo deles, forjar personalidades, desculpas e truques, mas estou esgotada. A concha na qual me recolhi roubo-me a alma, o que restava da minha força em enfrentar a falta completa de sentido em tudo. Todos meus livros me cercando, as únicas reais companhias além do vinho barato e dos cigarros que comecei a fumar para tentar trazer novos hábitos ao mundo morto que se tornou meu quarto. Os cigarros falharam, tornaram-se tão previsíveis quanto todo o resto.

Ligo a TV, vejo filmes inéditos, revejo os antigos, eles não conseguem me despertar nada além de sono. Folheio meus livros, a maioria de horror, e penso que o verdadeiro horror é minha própria vida onde sou o único monstro à solta, devorando a mim mesma com todos esses pensamentos impiedosos. A música que toca é algo entre o instrumental e o clássico, vozes humanas não são mais bem-vindas e perdi o pique para o rock n’ roll. Sinto o assombro em constatar que a arte não me salvará mais, que se tornou pare de um universo sem qualquer propósito, de uma existência fria e monótona. O mundo gira e permaneço parada, não acompanho seu ritmo, perdi o jeito – se é que um dia o tive – de caminhar entre as multidões. Meu telefone não toca mais, e não faço questão de saber onde o deixei na última vez que sai da cama.

Não digo que estou triste ou infeliz, a ausência de sensações também faz parte de permanecer quieta como uma pedra abandonada só fitando o teto que se aproxima mais e mais. Eu caio em sonos doentios, pesadelos estranhos com pessoas que não vejo há anos. Esqueci a face das pessoas que mais gostava, esqueci a minha própria face em algum lugar entre a dormência do sono e a inquietação do marasmo. Penso em toda carga de conhecimento que acumulei todos esses anos, poderia jogá-la na privada e mandar buraco abaixo. Não me serve de nada. Há um quê niilista nisso tudo, sei que me tornei um objeto empoeirado no meio de um quarto em desordem. Desisti da vida muito antes de saborear o que ela tinha de melhor, conheci vários tipos de morte cedo demais para me permitir criar ilusões. No fim das contas, tudo isso um dia vai acabar, não vale a pena.

Estico o corpo só para me sentar e arrastar o computador até mim, exausta, derrotada por uma centena de batalhas internas nas quais sempre sai como perdedora, começo a escrever coisas sem nexo, o que muitos chamam de textos surrealistas por não seguirem lógica alguma. Talvez eu considere esse pequeno relato inútil como um texto surrealista, isso também não tem importância mais, percebe? A gente passa a vida toda tentando definir o que somos e o que fazemos, encaixar nas normas e teorias. Nomear e rotular, todo mundo sempre fazendo parte de delimitações, encaixando-se e ajustando-se. Qual é a lógica disso? Pergunto para as paredes que agora parecem se aproximar acompanhando o teto que me esmaga, eu me sinto bem minúscula como Alice ao beber o copo de água, mas isso não é uma história ficcional, é minha vida que está diminuindo cada dia mais, presa em um vórtice que se abriu no meio da minha cama e no meio do meu caminho dolorosamente vazio de sentidos.

Olho para a tela do computador e tudo o que vejo é porcaria, poderia jogar pelo ralo também. Meus pertences soltos, desleixados, desarrumados. Quem se importaria em manter a ordem em um mundo particular tão devastado pela desordem mental. A nostalgia reaparece, os mesmos ciclos todos os dias, relembrando tempos em que achei que algo acontecia. Nada nunca aconteceu de verdade, saboreio as mentiras nas quais me reinventei por longos anos, penso em todas essas pessoas lá fora, cegas e felizes, festejando e brindando e fico tentada a acreditar em algum deus só para perguntar: o que aconteceu comigo?
 
Larissa Prado
Enviado por Larissa Prado em 31/08/2016
Reeditado em 28/10/2016
Código do texto: T5746244
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