NOTA DE FALECIMENTO (CARTA DE DESPEDIDA)

Saudoso santo sandeu, por quê sempre me vais embora, como o foste outrora e antes? Por quê tu sempre me foges? Que nome dás a estes sentimentos mortais, de inconsistência, insciência e fuga que tanto provocas; lucidez? E nós o que te fizemos sábio doutor, para que escondas as terras férteis da loucura, o manto sagrado dos lunáticos, a inocência cândida de travessuras?

Responda-me peregrino das encostas, suicida convicto, tu que tanto subiste, o que há lá para se ver? Aqui na Plebiceia dos homens não mais existo, as pedras são por demais pesadas e o rastro por demais sentido, as migalhas não valem o esforço, e das paixões só me resta um coração faminto. A tal Pasárgada não me existe, e quando existe - então hesito; fraquejo. Não vejo nada, posso contar nos dedos as vezes que tu me surgiste em sonho; calendrômicas crises - lúcidas - de nervos caricaturais.

Não é tempo de luxúrias! Nossa temperança anda escassa, cansamo-nos de setas e placas, não quero mais rumo ou direção, basta de tanto ditame sem sentido! Só tu me entendes lunático gentil, e olha que de lamúrias já vão tantos, e de tantos que foram, nem tu me ficas… criança desvairada!

Não te silencies, e me permita o inquisitório, tenha pena de teus queridos meninos pequenos, os homens de cruz - confusos sem Deus. Não nos deixaste nem pão para comer, e tuas palavras são enigmas aos ouvidos incapazes destes sacripantas mordazes, não resta-nos nada além de dúvidas e más perguntas - não foste tu mesmo, que dissestes, aos homens foram dadas as perguntas, pois só aos tolos se dá coragem de perguntar aquilo que não quereis saber?

E tu aí, além homem, além mundo, além nuvens, cosmos, espaço e outrem. Que tens contra nossa pequenez? Não é ela irrisória? A mixórdia do povo cego, a procura do rabo do burro… Venha nos visitar, ainda servimos-te de comédia! Mas não vens… pois não? A quem quero enganar…

Nada dura, nada é, nada fica, disseste-mo tu, em tua excelsa alvura de patife pagão. Terrível! Como iria eu saber? Nem mesmo tu-me ficastes! E que escura criatura eu sou sem tua fiel ternura… Quanto mais anseio contumaz comer da broa dos deuses mais tu me cospes e me empurras escada abaixo; idílico veneno saber o que quero! Mais ainda, saber que não me quereis! Já não basta Epimeteu ultrajar os homens, e dizer que nada nos sobrou, fazer-nos de ladrões às custas do irmão e encerrar a nós a fúria dos Deuses, Agora vens tu caçoar de nossa miudeza!

Como queria ser mais que teu cão! Nem sequer posso evitar que te atires ao precipício. Que desperdício pensar neste mundo concreto dos homens, é de certo, que tu é que estás melhor, junto as nuvens, as borboletas, os mortos - ninguém. Invejo-te louco altivo, o acaso te protege. Que acaso nos protegeria? Somos as pedras da calçada, ladrilhos metrados - mesquinhos - marcados, não há espaço pra ti. Nem Deus nem Santo. Homem nenhum… estátuas de argila não tem fé. E ainda tu nos dizes que Apolo separou o joio do trigo, e das entranhas de Píton fez nascer do Caos a Ordem. Que ordem? Tu que me dás ordens! Ordens nenhuma…

E quando encontrares os Deuses o que farás? Que oferendas eles tem pra ti, tão bravo servente, tão honesto mentecapto. Os céus? Loucos não precisam disso, eles já tem tudo… Tudo pode, tudo há de ser da lei, não disseram? Talvez os deuses sejam parte de ti e de tua demência pura - consonância maior com o cosmos interior. Nem tu sabes o que queres, pois não? E eu aqui que te almejo senhor de meu alento. Triste destino dos homens; enamorar-se de ti; falta de consciência. Mas tu fugiste, pois não? Podes voar… eu não.

Hernâni Arriscado - NOTA DE FALECIMENTO (CARTA DE DESPEDIDA).

Hernán I de Ariscadian
Enviado por Hernán I de Ariscadian em 11/06/2016
Código do texto: T5664130
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