O ÚLTIMO DOS HOMENS

Num daqueles dias tórridos de sol, enquanto caminhava. Zaratustra, sobre as pedras quentes e a pés descalços, pronunciou aos discípulos: […]

Disseram-nos os Deuses:

“- Vá homem! Vá e não volte até teres conquistado tua liberdade.”

Ao ouvir essa terrível profecia, me vi numa tremenda contradição. Pois como um homem em seu minimal estado de ser dúbio, poderia conquistar sua liberdade, perante o mundo que lhe assombra?

(Interessantemente, tal como o fogo que queimava-me os pés, a resposta surgiu flamejante.)

- Ora, digam-me todos, porque ando com os pés em brasa?

E em instantes as vozes repetiam em coro: “Porque andas sobre as pedras quentes!”.

(A resposta parecia óbvia, e a multidão que antes parecia entretida com a voz deste sábio, agora parecia confusa.)

- Vejam, só queimo meus pés porque sou livre!

(A população estarrecida, agora calada, se via mais confusa do que nunca.)

- Digam-me meu povo, porque vós não podeis, roubar ou atraiçoar vossos irmãos?

E uma voz ao longe, miúda e envergonhada, se dirigiu a mim com humilde verdade:

“Porque seria punido, senão com morte, à prisão!”

- Então se tu fores preso, o que perdes, senão tua liberdade, seja ela em vida ou de vida?

[…]

Em seguida desci das pedras e me pus entre eles, e disse: “Ora se tu estivesses preso, não poderias sair, e por essência não estarias livre. Mas nós aqui fora não estamos presos, e se não fomos sentenciados a tal, na prisão não podemos adentrar. Então se lá não podemos entrar; não estaríamos presos a tal condição?”.

(A multidão ficou atônita, nem sequer sabia se havia compreendido as palavras de seu profeta. Em seus rostos a cara da angustia e frustração ao não conseguir responder a tal pergunta, tomava-lhes à força.)

- Mesmo sabendo que queimar os pés não me é agradável, ao faze-lo, me fiz Livre! Então quando lhes disse que só queimo os pés porque de fato sou livre, não lhes disse menos que a verdade.

“Então tu quereis que nos queimemos, para que sejamos livres? Quanta insanidade!”. Gritaram do fundo, após torrentes de profundos mal dizeres.

- Oh, não vos façam de tolos! Vossa liberdade não se fez opressora, vós de forma alguma sois obrigado a queimar vossos pés, para que sabeis que estão livres. Pelo contrário, vossa sensatez e bom senso, ao não queimar vossos pés, é que vos faz Livres. Pois, ironicamente a única liberdade real se fez nesta trivial escolha; a de não usufruir dessa liberdade!

(O povo se calou a um só tempo, ninguém ousava refutar tal afirmação. E em silêncio, ninguém desviou seus pensamentos daquela estarrecedora revelação.)

- Mas e a voz dos Deuses? Sussurrou-me o jovem canineu curioso.

(E aqui se fez o motivo deste meu registro; esta pequena alma, e sua perspicaz pergunta, e por mais simples que pareça, a mais atenta dentre todas.)

- Meu rapaz, aquele homem, nunca saiu de onde estava; a Liberdade não estaria em lugar algum que procurasse. A Liberdade lhe surgiu simples ao recusa-la.

(Então revelei-lhe o último trecho.)

“Não irei a lado algum! Pois só poderia voltar se encontrasse a Liberdade, e a Liberdade não encontraria, pois já não seria Livre, se me fosse proibido voltar para procura-la aqui também.”

[…]

Heis que dos céus se fez a Luz; o último dos homens tinha se feito Livre…

Autor: Hernâni Arriscado - (O Último dos Homens)

“Ironicamente, a única liberdade real, se dá no simples direito de não se querer ser livre.”

Hernán I de Ariscadian
Enviado por Hernán I de Ariscadian em 02/06/2016
Reeditado em 18/03/2024
Código do texto: T5654465
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