Breve história de nostalgia e desassossego
Brasileira, iniciei minha vida num país ditatorial, governado por militares, após o golpe de mil novecentos e sessenta e quatro. Não pretendo aqui falar da história. Há filmes e livros que nos contam esse terrível capítulo que as futuras gerações precisam conhecer, mesmo que lhes toquem duro a sensibilidade. Hoje, vinte e nove de abril de dois mil e dezesseis, assisto boquiaberta e aparvalhada ao que aparece como novo, sabendo que se trata do caduco teatro de soluções à brasileira, em que o final compõe com a música do Caetano: “a força da grana ergue e destrói coisas belas”.
Mas voltando. Me lembro, desde pequena, de não aceitar receber tudo pronto e acabado. A televisão, por exemplo, me deixava espantada! Eu queria entender porque podíamos ver pessoas naquela tela e sonhava participar desse conhecimento que percebia como mágico. Cresci brincando pelas ruas, nos arredores do beco onde morávamos, em uma casa com quintal e árvores frutíferas. Naquele tempo, anos mil novecentos e setenta e “fumacinha”, eu pensava que éramos ricos!!! E ninguém, meus sete irmãos e eu, tinha brinquedos da estrela ou consumia salgados, doces e refrigerantes, compulsivamente. Dividíamos o feijão e o cobertor e as histórias de fantasmas de velhinhas que voltavam para pegar nosso pé à noite, contadas por minha mãe a fim de nos controlar, penso eu, uma vez que nos educou sozinha. Não me lembro de nenhum momento da vida ter sido fácil, embora parecesse imutável, ou, de acessar qualquer direito social ou privilégio, sendo minha família ampla, com dez pessoas, a maioria jovens em formação. Meus pais dividiam os papéis rigidamente: uma, em casa cuidando da "infra", da prole, e do ninho, e, o outro, trabalhando igual a um burro de carga, que era como se referia a si, meu pai, quando chegava do trabalho, todas as tardes, com seu par surrado de sapatos. Mas ele sorria feliz porque gostava daquela filharada e da mulher o esperando sem problemas e com a comida pronta! Para os homens era tudo muito mais fácil; e ele se realizava ao chegar e nos ver ali e se sabendo dono da situação e no controle.
Já adolescente, cometi erros comuns da idade. Não quando votei aos dezesseis no candidato diferente daquele que meu pai queria, o que o deixou furioso. Votei em um ex-operário. Entretanto, eu não entendia o que significavam todas aquelas mudanças pelas quais meu país passava. Cresci em um ambiente conservador, casa, escola, igreja, vizinhança, amigos poucos, parcos livros, um violão, vitrola simples e quase nada de discos, rádio, televisão e um único teatro, o telhado: um mundo fantástico e ideal, sem problemas nacionais ou internacionais. Nada se falava sobre ditadura. Silêncio total e sepulcral. A vida corria cega e tranquila deixando rastros de ignorância e falta de elaboração. O futuro do país continuou sendo tecido com fios opacos entrelaçados tão fortemente que nos impedem, ainda hoje, de enxergar e encarar o passado violento erigido às custas de vidas ceifadas pela crueldade de uma tal classe dominante.
O computador só viria a figurar como segunda tela em minha vida aos dezesseis nas aulas de programação, cobol. Em casa, ninguém imaginava que se pudesse ter um daqueles ou que nos comunicaríamos pela internet com o mundo todo. O mundo mudou muito nesses quarenta e três anos e, nos últimos vinte anos, nele me encontro angustiada e melancólica. Os sustos que me apanham – e a muitas pessoas de meu convívio – de supetão e diariamente e, cada vez mais rápidos e frequentes, me fizeram abandonar a televisão, as telas, e buscar os livros, e os amigos, e gente que luta todos os dias, e as ruas e um país melhor para nós e para o mundo.
Brasileira, iniciei minha vida num país ditatorial, governado por militares, após o golpe de mil novecentos e sessenta e quatro. Não pretendo aqui falar da história. Há filmes e livros que nos contam esse terrível capítulo que as futuras gerações precisam conhecer, mesmo que lhes toquem duro a sensibilidade. Hoje, vinte e nove de abril de dois mil e dezesseis, assisto boquiaberta e aparvalhada ao que aparece como novo, sabendo que se trata do caduco teatro de soluções à brasileira, em que o final compõe com a música do Caetano: “a força da grana ergue e destrói coisas belas”.
Mas voltando. Me lembro, desde pequena, de não aceitar receber tudo pronto e acabado. A televisão, por exemplo, me deixava espantada! Eu queria entender porque podíamos ver pessoas naquela tela e sonhava participar desse conhecimento que percebia como mágico. Cresci brincando pelas ruas, nos arredores do beco onde morávamos, em uma casa com quintal e árvores frutíferas. Naquele tempo, anos mil novecentos e setenta e “fumacinha”, eu pensava que éramos ricos!!! E ninguém, meus sete irmãos e eu, tinha brinquedos da estrela ou consumia salgados, doces e refrigerantes, compulsivamente. Dividíamos o feijão e o cobertor e as histórias de fantasmas de velhinhas que voltavam para pegar nosso pé à noite, contadas por minha mãe a fim de nos controlar, penso eu, uma vez que nos educou sozinha. Não me lembro de nenhum momento da vida ter sido fácil, embora parecesse imutável, ou, de acessar qualquer direito social ou privilégio, sendo minha família ampla, com dez pessoas, a maioria jovens em formação. Meus pais dividiam os papéis rigidamente: uma, em casa cuidando da "infra", da prole, e do ninho, e, o outro, trabalhando igual a um burro de carga, que era como se referia a si, meu pai, quando chegava do trabalho, todas as tardes, com seu par surrado de sapatos. Mas ele sorria feliz porque gostava daquela filharada e da mulher o esperando sem problemas e com a comida pronta! Para os homens era tudo muito mais fácil; e ele se realizava ao chegar e nos ver ali e se sabendo dono da situação e no controle.
Já adolescente, cometi erros comuns da idade. Não quando votei aos dezesseis no candidato diferente daquele que meu pai queria, o que o deixou furioso. Votei em um ex-operário. Entretanto, eu não entendia o que significavam todas aquelas mudanças pelas quais meu país passava. Cresci em um ambiente conservador, casa, escola, igreja, vizinhança, amigos poucos, parcos livros, um violão, vitrola simples e quase nada de discos, rádio, televisão e um único teatro, o telhado: um mundo fantástico e ideal, sem problemas nacionais ou internacionais. Nada se falava sobre ditadura. Silêncio total e sepulcral. A vida corria cega e tranquila deixando rastros de ignorância e falta de elaboração. O futuro do país continuou sendo tecido com fios opacos entrelaçados tão fortemente que nos impedem, ainda hoje, de enxergar e encarar o passado violento erigido às custas de vidas ceifadas pela crueldade de uma tal classe dominante.
O computador só viria a figurar como segunda tela em minha vida aos dezesseis nas aulas de programação, cobol. Em casa, ninguém imaginava que se pudesse ter um daqueles ou que nos comunicaríamos pela internet com o mundo todo. O mundo mudou muito nesses quarenta e três anos e, nos últimos vinte anos, nele me encontro angustiada e melancólica. Os sustos que me apanham – e a muitas pessoas de meu convívio – de supetão e diariamente e, cada vez mais rápidos e frequentes, me fizeram abandonar a televisão, as telas, e buscar os livros, e os amigos, e gente que luta todos os dias, e as ruas e um país melhor para nós e para o mundo.