Veneza(s)

Tenho me esquecido de tantas “coisas”... E tenho sentido muita falta. Falta de quê? Bom, não sei. São tantas “coisas”, que me perco do que exatamente eu estou sentindo falta. Esforço-me às vezes para me lembrar das ruas de Recife, ou do rosto de meus avós, e pouco me lembro. Estranho às vezes nem sentir tanta saudade, mas é que eles estão tão distantes em tempo, memória, e geograficamente, que mal mal me lembro de ter estado com eles. Quando foi a última vez? Eu sinto saudades. Só acho que me acostumei a essa ausência que sempre se fez presente, de certo modo, embora o senhor, vovô, não tivesse se ausentado de modo nenhum. Eu que me ausentei. Meu avô, eu sinto sua falta, embora não pareça, embora eu não lhe diga isso. Aquela pipoquinha amanteigada do Recife que o senhor sempre me comprava quando vinha para Minas, trazia em montes... Veneza! Acho que esse é o nome. Nossa... Foi esse o gosto da minha infância. Me impressionava como você sempre lembrava do meu gosto, ali estava o seu amor em forma de pipocas. Nunca me esqueço...

Minha avó ligou para cá esses dias e eu nem falei com ela. Não conseguimos ter uma conversa saudável por mais de cinco minutos. Pense numa pessoa que se prende ao passado! Talvez eu tenha puxado isso dela – a diferença é que eu não falo. Acho que puxei todos os defeitos da minha inteira linhagem. Estão todos acumulados em mim. Eis aqui então o fim da linha.

Parece-me que já se foram vidas e mais vidas. E ainda tenho vinte e dois anos – ao mesmo tempo em que me parece tão já... Não sei quando foi que eu perdi a noção do tempo.

Tenho uma imagem bem distorcida na minha cabeça. Eu passando por uma daquelas pontes de Recife; acho que já faz mais de doze anos. Me parecia muito bonita, e enorme. Como me parecia grandiosa aquela ponte! Hoje já nem sei se sua grandiosidade estaria em mim ainda intacta. Talvez eu passasse por ela como passo hoje por qualquer outra ponte – descobrirei quando voltar lá e passar pelo mesmo lugar. Viver tinha uma sensação boa. A sensação do vento no rosto. E essa sensação era como ganhar um beijo de Deus. Hoje já nem sei mais onde está Deus. Uns dizem que ele vive dentro de nós, outros dizem viver fora. Eu prefiro nem tentar pensar nisso... Se Deus está aí e vive, eu então o sinto como sinto tudo o mais. E ponto. Mas aí é que está: eu não sei se o sinto mais... Às vezes eu tenho a sensação de que sim. Só às vezes. E outras mais vezes parece que ele está do outro lado da ponte e eu não consigo chegar lá.

Às vezes acho que já sou um fantasma. O que me prova eu estar viva é o sentimento que há em mim. Não importa de que natureza, é o sentimento que me (re)vive – ou que me mata, mas mesmo que morrendo, nesse sentido, permaneço viva de alguma forma: não importa de que natureza é o sentimento que me vive, ele só me faz sentir que eu estou viva, que estou aqui, não necessariamente que eu esteja me sentindo viva, cheia de vida, vívida, só aqui... Às vezes me sinto vívida também... Por isso, vez ou outra, acredito que Deus existe por aí. Deus parece ser sentimento. Assim abstrato, intocável, em toda sua complexidade, mas que sentimos em nós de alguma forma simples e inevitável.

Nisso vive o meu prazer de viver: sentir! Prazer em olhar para algo ou alguém; prazer em ouvir uma canção que te alivia ou aperta a alma, ou ouvir os pássaros, ou o som do vento, ou a voz de alguém; prazer em sentir um cheiro que te retoma para um passado remoto ou que te faça quase sentir o gosto de algo incrivelmente saboroso; prazer em sentir o gosto de uma pizza, ou de uma boca; prazer em tocar um instrumento, uma arte, um elemento histórico, um rosto, ou um corpo. Sentir o prazer genuíno do toque ao tocar a pessoa amada... Ah o toque... Quando é a pessoa certa o corpo inteiro treme e a alma fica inteira em uma convulsão infinita. E como fica! Até na dor encontro o meu prazer. Pois, antes de tudo, sei que ainda estou sentindo – embora muitas vezes eu não queira sentir mais. Talvez virar só um sentimento, que nem Deus. Acho que meu nome seria... Não sei. Ficarei a pensar.

Hoje estou com saudades. Estou um pouco triste também. Mas mais do que triste, eu estou com saudades. Do meu avô. Do meu Recife. Das minhas lembranças que não tenho mais... O tempo passa tão rápido e lento demais. Como pode isso? O tempo é rapidulento. Quando paro pra pensar, me dou conta de que vai fazer vinte e três anos que nasci, no entanto, me parece que vivi uns sessenta anos já. Não importa... O tempo está passando. E caminho para a morte a passos lentos num tempo acelerado. Estou me sentindo perdida em meio a tanta saudade. Que seja... No meu leito de morte irei querer pipoquinhas Veneza para comer.

Larissa Maciel
Enviado por Larissa Maciel em 27/03/2016
Reeditado em 16/05/2016
Código do texto: T5586950
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