DO AMOR NASCENTE
Há o que se escreve em tardes mornas, há o que se escreve em noites frias e há o que não se escreve, nunca; o que fica suspenso entre o som e a letra, em doloroso silêncio de sombra. Quero, mas como mandar-te uma carta assim? Tento fotografar uma palavra e espero. Revelada, ela surge contorno, tímida demais para se mostrar. Quero te dizer, mas não digo. O papel virgem sobre a mesa me encara com severidade. Dou a partida. Um traço tênue e trêmulo, como a sonoridade do r de amor. A palavra, prisioneira de seu significado, não se decide. Quer dizer mais do que diz e se hifeniza à espera de companhia. Então:
"Desenho uma casa em azul e branco... Ela tem janelas azuis e cortinas. Delicadas cortinas em renda branca que dançam na brisa ligeira..."
Dentro da casa as palavras são nulas. A conversa se faz de gestos. No canto da folha,
"No canto da folha, onde desenho, escrevo: casa, caza, kaza e kasa. Só pra ver qual jeito é o mais bonito..."
Quem casa quer casa, minha mãe dizia. Casa vem de ca-sa-men-to. Será? Casamento é complemento de casa. Será? Não importa. Estou pensando nestas besteiras enquanto a palavra não vem. Olho o papel, que também espera. A casa, na solidão.
"então desenho um lago e no lago planto patos. Muitos. E mato, ao redor do lago. Com algumas flores singelas, cor-de-rosa como o papel, amarelas, vermelhas e até azuis..."
A palavra que se apronta também é cor-de-rosa. Rosa-pálido, suave como a pele de um bebê. Meu coração se inquieta. Tenta ajudar, mas a palavra, teimosa, continua partida. Sinto seu gosto na ponta da língua. Olho a casa e o lago
"...com suavidade, certo ar de melancolia e redondos rabiscos, aleatoriamente, construo o céu e penduro nele brancas e gordas nuvens. E um sol. Um sol sorridentemente simpático..."
O que quero te dizer, neste momento, dorme de corpo inteiro, no céu da boca, levemente molhado. Bato com a caneta sobre a mesa, movida por ansiedade e impaciência. Também aproveito para acordar o que sinto. A palavra se solta, freme entre meus lábios e dentes e recua. Páro.
"...do lado direito da folha desenho uma fileira de coração flechado e para que eles não caiam, prendo-os com uma trança mal feita ..."
Não tem importância essa sinuosidade dos traços. É nervoso. Além do mais, às vezes a beleza é completamente inútil. Neste caso, por exemplo, é. Penso em rasgar esta folha e fechar o caderno. Certo medo acabou de raspar o ar. Ouvi o barulho e meu coração se assustou. Assustado, ele se encolhe deixando claro sinal para que eu engula a palavra. Talvez não seja medo. Talvez, dúvida. Passou. O barulho, afinal, não deixou tão forte impressão. Acho que vou te mandar um desenho, mesmo. Talvez este aqui, depois de passado a limpo. Mas, antes,
"... desenho uma árvore. No galho tenro, ainda, pouso o pássaro e em seu bico, delicado envelope..."
Faço isso com propósitos de mandar-te essa palavra em estado de enigma, como um pensamento secreto, predito. Para sabê-la terás que subir na árvore e pegar o pássaro, abrir o envelope, decifrar e tomá-la como sua. Bem vês, ofereço-me a ti em desafio, mas também em cores e formas. Psiu! Ainda agora ouvi um gemido lancinante. Era ela, a palavra, que se debatia em seu esconderijo. Não quer se mostrar.
"... Então, desenho uma menina e um menino sentados num banquinho à beira do lago, Daqueles de um traço, só, magrinhos! De mãos dadas e corações bem vermelhos!... . Beijos!"
Num sussurro breve, a palavra me confidencia ser desnecessária agora. Suspeita que descubras tudo ao ler o desenho, mesmo sem ouvi-la. O meu segredo... Entendes? Aquele outro desenho que minha alma sonha e pinta, todos os dias, todas as noites.
Torno ao meu estado expectante: e se não me desejares tanto? Dobro com carinho minha carta-desenho. Melhor aguardar a palavra... Ou quem sabe, te mandar, então, pelo vento ligeiro, uma carta cheia de zumbidos. Uma breve e leve carta, carregada de palavras-insetos, que te peguem em momentos de distração e fiquem lá, ciciando no teu ouvido. Mas, quero que saibas: ainda isso, não será tudo o que tenho para te dizer.
Há o que se escreve em tardes mornas, há o que se escreve em noites frias e há o que não se escreve, nunca; o que fica suspenso entre o som e a letra, em doloroso silêncio de sombra. Quero, mas como mandar-te uma carta assim? Tento fotografar uma palavra e espero. Revelada, ela surge contorno, tímida demais para se mostrar. Quero te dizer, mas não digo. O papel virgem sobre a mesa me encara com severidade. Dou a partida. Um traço tênue e trêmulo, como a sonoridade do r de amor. A palavra, prisioneira de seu significado, não se decide. Quer dizer mais do que diz e se hifeniza à espera de companhia. Então:
"Desenho uma casa em azul e branco... Ela tem janelas azuis e cortinas. Delicadas cortinas em renda branca que dançam na brisa ligeira..."
Dentro da casa as palavras são nulas. A conversa se faz de gestos. No canto da folha,
"No canto da folha, onde desenho, escrevo: casa, caza, kaza e kasa. Só pra ver qual jeito é o mais bonito..."
Quem casa quer casa, minha mãe dizia. Casa vem de ca-sa-men-to. Será? Casamento é complemento de casa. Será? Não importa. Estou pensando nestas besteiras enquanto a palavra não vem. Olho o papel, que também espera. A casa, na solidão.
"então desenho um lago e no lago planto patos. Muitos. E mato, ao redor do lago. Com algumas flores singelas, cor-de-rosa como o papel, amarelas, vermelhas e até azuis..."
A palavra que se apronta também é cor-de-rosa. Rosa-pálido, suave como a pele de um bebê. Meu coração se inquieta. Tenta ajudar, mas a palavra, teimosa, continua partida. Sinto seu gosto na ponta da língua. Olho a casa e o lago
"...com suavidade, certo ar de melancolia e redondos rabiscos, aleatoriamente, construo o céu e penduro nele brancas e gordas nuvens. E um sol. Um sol sorridentemente simpático..."
O que quero te dizer, neste momento, dorme de corpo inteiro, no céu da boca, levemente molhado. Bato com a caneta sobre a mesa, movida por ansiedade e impaciência. Também aproveito para acordar o que sinto. A palavra se solta, freme entre meus lábios e dentes e recua. Páro.
"...do lado direito da folha desenho uma fileira de coração flechado e para que eles não caiam, prendo-os com uma trança mal feita ..."
Não tem importância essa sinuosidade dos traços. É nervoso. Além do mais, às vezes a beleza é completamente inútil. Neste caso, por exemplo, é. Penso em rasgar esta folha e fechar o caderno. Certo medo acabou de raspar o ar. Ouvi o barulho e meu coração se assustou. Assustado, ele se encolhe deixando claro sinal para que eu engula a palavra. Talvez não seja medo. Talvez, dúvida. Passou. O barulho, afinal, não deixou tão forte impressão. Acho que vou te mandar um desenho, mesmo. Talvez este aqui, depois de passado a limpo. Mas, antes,
"... desenho uma árvore. No galho tenro, ainda, pouso o pássaro e em seu bico, delicado envelope..."
Faço isso com propósitos de mandar-te essa palavra em estado de enigma, como um pensamento secreto, predito. Para sabê-la terás que subir na árvore e pegar o pássaro, abrir o envelope, decifrar e tomá-la como sua. Bem vês, ofereço-me a ti em desafio, mas também em cores e formas. Psiu! Ainda agora ouvi um gemido lancinante. Era ela, a palavra, que se debatia em seu esconderijo. Não quer se mostrar.
"... Então, desenho uma menina e um menino sentados num banquinho à beira do lago, Daqueles de um traço, só, magrinhos! De mãos dadas e corações bem vermelhos!... . Beijos!"
Num sussurro breve, a palavra me confidencia ser desnecessária agora. Suspeita que descubras tudo ao ler o desenho, mesmo sem ouvi-la. O meu segredo... Entendes? Aquele outro desenho que minha alma sonha e pinta, todos os dias, todas as noites.
Torno ao meu estado expectante: e se não me desejares tanto? Dobro com carinho minha carta-desenho. Melhor aguardar a palavra... Ou quem sabe, te mandar, então, pelo vento ligeiro, uma carta cheia de zumbidos. Uma breve e leve carta, carregada de palavras-insetos, que te peguem em momentos de distração e fiquem lá, ciciando no teu ouvido. Mas, quero que saibas: ainda isso, não será tudo o que tenho para te dizer.