CACOS PERDIDOS DE SONHOS

CACOS PERDIDOS DE SONHOS

Sentemo-no lado a lado e vamos fazer de conta

que fomos velhos amigos que, por acaso, se encontram

depois de um longo período vivido em terras distantes.

Posso saber, pelo menos, quem tu és e de onde vens?

Eu sou tua consciência, eu sou a tua memória.

Eu sou aquele porquinho, gordo, de cor amarela

com uma fenda nas costas que guardava as moedinhas

da tua minguada fortuna, quando ainda eras criança.

Eu era tudo pra ti, e tu, pra mim, quase tudo.

Mas, um dia, me quebraste, sem piedade, sem dó,

reduzindo a tristes cacos a minha alma e meu orgulho.

E me jogaste no lixo, por inútil à tua vida...

E me levaram, chorando. Nem um adeus tu me deste!

Dando gritos de alegria, recolheste as moedinhas

espalhadas pela mesa, separaste-as em montinhos,

as contastes várias vezes e saíste em disparada.

Na padaria da esquina, transformaste as moedinhas

em balas, doces, sorvetes, saciando a tua gula.

Sem um pingo de remorso me arrancaste da memória

como se eu nunca existira!

No decorrer de teus anos, repetiste o gesto ingrato

para com teus amigos que dedicaram suas vidas

para obteres sucesso. E a todos apenas foste

aquela luz ilusória que só brilhava ofuscante

para anular outras vidas.Tua vida não deixou rastro.

Apenas um frio escuro marcou a tua passagem!

Quanta tristeza senti ao saber do teu fracasso!

Tentei juntar os meus cacos pra ser, de novo, o cofrinho

dos sonhos que ainda restavam.

Tentei. Mas não consegui achar nem mesmo um caquinho.

Eu já não mais existia. Era somente um fantasma,

movido pela saudade de uma longínqua amizade.

Então entrei na tua mente pela porta da lembrança,

no afã de encontrar ali cacos perdidos de sonhos

pra recompor tua vida.

Porém tua mente era escura, como escura foi tua vida.

Só raros pontos de luz, num piscar fraco e distante,

confirmavam a existência de sonhos em agonia.

Em vão tentei agarrá-los, mas, apenas os tocava,

suas luzes se desfaziam em fumaça esbranquiçada.

Éramos dois fracassados. Eu não mais do que um fantasma

impedido de sonhar e tu, fazedor de sonhos

inconsistentes, fugazes. Morria, assim, a esperança

de eu tirar um velho amigo do atoleiro do egoísmo.

Tudo em ti fora tão falso, quebradiço, passageiro!

Quando deixava tua mente, uma nova luz brilhou.

Era uma luz diferente. Não piscava como as outras.

Apenas alguns vacilos de soluços mal contidos.

Toquei-a e não se desfez...

Aos poucos foi-se apagando e, quando apagou de vez,

uma nova luz brilhou, um pouco mais adiante

e se apagou lentamente. E assim foi por várias vezes...

Olhei e não entendi!...

Juro que não era um sonho, pois os fantasmas não sonham.

Teus olhos lacrimejavam, num tom vermelho de choro!

Olhavas, com ar saudoso, velhas fotos que tiravas

de uma caixa de sapatos e as pousava sobre a mesa

tal como, um dia, fizeras com as tuas moedinhas.

A lembrança comoveu-me. Quis chorar, não consegui.

A um fantasma lhe é negado qualquer sentimento humano.

Não ama, não ri, não chora. Apenas grita e amedronta.

Eu era, sim, um fantasma. Um fantasma diferente,

gerado pela saudade, e atado pela lembrança

de uma amizade profunda. Um fantasma diferente

capaz de criar mil sonhos se fosse um ente visível...

E a saudade deu-me um corpo, me deu alma, me deu vida.

Já não era mais fantasma. Era, enfim, um ser humano.

Então, para perceberes minha presença na sala,

molequemente soprei as fotos ali espalhadas,

jogando-as fora da mesa. Crendo ser obra do vento,

que entrara pela janela, viraste para fechá-la...

Teus olhos se esbugalharam. Teu rosto empalideceu.

Tua boca se escancarou, engasgada por um grito.

Teu corpo petrificou-se como se tivesses visto

um fantasma ou um bandido.

Acalmei teu desespero com um sorriso de amigo.

Disse quem eu fora um dia e o porquê da minha vinda.

Quis saber por que choravas, vendo fotos tão antigas,

se, durante a vida inteira, só viveste para ti,

rindo de tudo e de todos, endeusado no egoísmo...

Coisas próprias da velhice que pra ti não têm sentido,

me disseste com tristeza...

Meus anos foram passando e, mais rápido que o tempo,

os sonhos de antiga glória, um a um, se desfizeram,

legando à minha velhice um vazio medonho e frio

de derrotado infeliz.

Sempre sorri para a vida que, em troca, sempre me deu

muito mais que eu merecia.

Mas, hoje, não mais sorrio. Passei a odiar os sonhos

quando a injustiça e a saudade cruzaram o meu caminho.

A injustiça clamorosa, fruto natural da inveja

ou do instinto de maldade de alguns poucos infelizes,

que atrofiam ideais que não sejam só os deles.

Hoje não me ferem mais como, um dia me feriram.

A velhice as derrotou dobrando-lhe a arrogância.

Hoje são vistos por mim, como sempre se mostraram:

ridículos espantalhos.

A saudade, essa machuca!...

É o passado em nós presente, afagando velhos sonhos.

É o desejo que arrebata, que extasia, que fascina.

É a lembrança dolorida de nossos entes queridos.

É a mágoa, jamais curada, de amores mal sucedidos.

È a criadora malvada da dor, nascida do adeus.

Adeus, palavra -veneno, a infernizar-nos a vida!

Adeus, palavra pequena, de efeito avassalador.

Ponto final odiado de grandes sonhos de amor.

Última placa fincada na encruzilhada de vidas

que, lado a lado vivendo, se despedem para sempre.

Frio e macabro epitáfio silenciando ideais

duramente conquistados.

Adaga que fere fundo o peito de quem viveu

um passado alucinante, impedindo-o de criar

novos sonhos no presente.

Eu criei mais de mil sonhos, desmarcados pelo tempo.

Deles herdei a saudade e da saudade, a esperança

de revivê-los um dia.

Mas eles nunca voltaram...

Talvez se tenham apagado nos sonhos das outras vidas!...

Cansado de me iludir com valores do passado

mas inúteis no presente, cansado de me sentir

um sonhador fracassado...

Dei voz de prisão aos sonhos.

Algemei a fantasia, encarcerei a saudade,

e exilei, pra sempre, o adeus, impedindo-o de voltar.

Disse basta aos ideais. Mergulhei na egolatria

repelindo, com violência, qualquer tipo de altruísmo.

Livre, enfim, de preconceitos, modelei o meu futuro

nos padrões desse egoísmo.

Pisei almas, pisei corpos, ri da miséria dos outros.

E em me crendo quase um deus, isolei-me nas alturas...

Cansado de ser um deus de um mundo triste e vazio,

voltei, outra vez à Terra.

Todos se riram de mim, como outrora, eu rira deles.

Fui maltratado, pisado, ferido no meu orgulho

e nenhum dos meus amigos – se é que eu já os tive algum dia –

acorreu em meu socorro...

Me aborreci do presente e voltei para o passado...

Por acaso, eu encontrei, numa caixa de sapatos;

alguns momentos de vida. E, ao vê-los, juro, chorei!

Não o choro de tristeza, mas a sensação gostosa

de reviver tempos idos ao embalo da saudade!

E eu, amigo, te encontrei nas luzes que soluçavam

no escuro da tua mente. A saudade deu-me vida

para juntos revivermos lembranças adormecidas

ou, talvez, já quase mortas no fundo da tua mente.

Sentemo-nos lado a lado. Separemos, em montinhos,

cada etapa da tua vida, como um dia já o fizeste

com as tuas moedinhas...

E... revivamos tua vida!

João Roberto
Enviado por João Roberto em 22/03/2016
Código do texto: T5581216
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