Paisagens da alma XIV
Fim de tarde, o silêncio de há poucos minutos vai desaparecendo lentamente em contraste ao movimento que aumenta o prenúncio da noite, rompendo o silêncio da tarde. Uma brisa suave com prólogo de frio desce aos poucos por sobre os corpos transeuntes, que só sei da existência por causa de suas vozes que me chegam aos ouvindos, cansadas e vencidas, como eu, pelo dia que acena adeus do horizonte oposto ao pôr-do-sol.
Vejo duas crianças com cadernos de catequeze e sinto uma nostálgica sensão de comunhão com tudo, lembro sem querer de minha primeira comunhão, sorrio mas não percebo. Sou feliz só quando não existo. Por sobre as ruas um ar de passado com novidade do presente se misturam ao Agora com expectativa de futuro, sinto-me ansioso com a noite como se um medo oculto escondesse o porquê. Vejo-me sendo carregado pelo sentimento metafísico de unidade como se os murmurios de crianças, o vento fazendo chiados nas folhas, os carros que só escuto os roncados, o avião que está passando, exisitissem para que eu os percebesse.
Que seria dos sons que ninguém nota, do inútil e passageiro, sem eu aqui para acolhe-los como partes de minha alma? Que seria de mim sem eles...
Sou parte do fim do dia que se esvai sem avisar, vou-me deixando para trás como passos na estrada - a cobra troca de pele, a lagarta se transforma em borboleta e esquece-se a vida nas vozes e na paisagem de crianças a brincar, morre tudo silenciosamente com ar de eternidade. Vou passando pela vida de mãos dadas com o mundo.
Vejo por cima das casas o crespúsculo se anunciando nas nuvens que se aglomeram em cores quentes e frias. Aos poucos a metamorfose de cores da lugar ao negrume da noite, a lua suspensa no esquecimento brilha despercebida por causa das luzes alaranjadas dos postes, nuvens são varridas para além da visão, e as estrelas brilhando no vazio escuro despertam para mim do sono profundo, e sonho a vida no brilho dos meus olhos...