Avó-Velha
A minha bisavó, por todos chamada avó-velha, tinha um peru que corria toda a gente à bicada, sobretudo quem fosse menor que ele...desaventuradamente, eu!
Lá vinha ele todo eriçado a correr atrás de mim ...e quando bicava, deixava mossa e pânico de pontapés com as longas garras e grande reboliço de penas levantadas, pareceia possesso!
Mas a minha bisavó tinha os seus esbirros favoritos: além do peru um gato preto que diziminava sem dó os pintainhos transviados das galinhas, que nem ousavam enfrentá-lo, fugindo em grande algazarra!
...Tentavam dar cabo dos malfeitores, mas ela não permitia!
Entre os seus poderes fazia parte uma bengala...e que bengala!
Era fugir dela o mais possível, parecia que tinha vida própria, deixava marca onde acertava.
Um dia a criada, Henriqueta, que muito tinha apanhado mas que entretanto crescera, apanhou-a no ar e zumba! Partiu-a ao meio, no joelho dobrado.
Passou a levar menos com a bengala sucessora...que nem por isso ficou quieta!
A avó-velha mandava isto e aquilo, era a matriarca, apesar dos noventa e tal anos. Detinha todos os rendimentos e ninguém se atrevia a desautorizá-la.
Mas quando estava de bom humor...sentávamo-nos as duas nos degraus do balcão a migar folhas de couve para as galinhas e ela contava estórias com centenas de anos, de todos os antepassados, que vieram de outros lados até se instalarem, poderosos, em Monsanto.
Contava a estória muitas vezes, com nomes, pormenores e datas, sempre certinha!
Conseguia enfiar uma agulha, se estivesse ao sol....
Andava curvada, com o corpo e as pernas quase em ângulo reto.
Punham-lhe ventosas e sanguessugas, que estavam num pote de barro tapadas com um trapo esticado.
Mandava fazer tabuleiros enormes de broas de mel, só para ela.
Metia-as na arca e ia comendo, era gulosa, até que se estragavam... então chamava quem estivesse perto e mandava dar os bolos à canalha, miúdos famintos cuja única guloseima era pão com um pouco de açúcar, os felizardos cujas mães compadecidas os cuidavam
....Essas fatias de pão com açúcar e os laços nos cabelos das meninas, faziam-me suspirar, não de inveja mas de desespero,
embora nada faltasse no Louredo senão cuidado e carinho.
Como eu gostaria de ter os cabelos compridos apanhados com um laço!
Mas sempre me cortaram o cabelo curto, com fraja, pelo meio da orelha, que se alisava num instantinho.
Contadora de estórias, a avó-velha fazia-me viajar no tempo, desde os reis, em que um avô Tomás viera da Beira Alta e ali comprara terras, multiplicara riquezas, tornando-se um dos maiores lavradores da aldeia.
Depois fazia uma longa pausa, que o meu silêncio não quebrava, dedicando-se talvez na muda lembrança de assuntos que não lhe convinha contar-me mas contava a outras mulheres sem dar por mim, como o parto de um filho que ficara atravessado no parto, jamais esquecendo a aflição e as dores terríveis que surportara.
De cabelos de prata, sentada ao sol num tropeço,parecia uma rainha!