Paisagens da Alma XII

Eu caminhava ora pelos pensamentos, nulo como o amplo céu mudo, a passos sem destino, dormindo para as coisas externas que passavam como rastros por meus olhos indiferentes, ora caminhava pelas ruas cinza do centro urbano, observando os grandes espaços que os objetos ocupavam, mergulhado no silêncio por trás das formas e sons, suspenso como uma boia esquecida em águas calmas do oceano. Olhares se cruzavam e nunca mais se viam novamente, me lembravam, não sei por qual razão, de páginas de um escrito esquecido na gaveta; passávamos todos como folhas sopradas pelo vento, no esquecimento de cada página. Dormiam esquecidos para o espaço que preenchiam na existência, o silêncio a que as formas movimentavam-se inconscientes preenchia os sons de passos e vozes, sustentando-os o mistério a que todas as coisas ali iam se reduzindo sem que soubessem, enquanto escorriam pelas horas incertas do tempo como folhas mortas que se desprendem dos galhos, sopradas pelo vento que elas sentem, mas não veem.

Senti ternura no coração, sossego e sono nos pensamentos, e sorrio quando avisto em meio aos corpos transeuntes uma criança que brincava com um gatinho. Como um efeito de digestão do que os olhos viam, desceu por sobre meus sentidos um sono sereno com pensamentos que caíam como chuva na janela, calmos como as horas vazias que se anulam num bom e sonolento dia de tédio com dia de chuva.

Pensava com os sentidos embalados pelos gritos da criança que corria pelos grandes espaços vagos da praça. Cristo pendia numa cruz na parte mais alta da igreja da praça, de seus olhos uma tristeza serena descia por sobre os corações esperançosos, que escutavam os sermões do padre da porta da igreja. E aquilo entristeceu-me...

E como quem se curva diante do mestre para fazer uma pergunta, disse ao coração: Que esperam? A vida que esperam está aqui. Cada dia ela se esquece de si mesma para nascer mais jovem, mais bonita. Se esqueçam, um dia serão esquecidos também, desnudem vossos corpos das vestes puídas do conceito de pessoa e sintam a vida como corpos de vida que é o que são...

Meu coração permaneceu em silêncio e repousou minhas duvidas embaixo do travesseiro, a que pôs minha alma para dormir. Retirei-me a passos lentos observando a criança que fazia carinho no gatinho. Sai como a sombra de um homem invisível, claro como a luz que não se vê, mas sabe-se que existe por que vê.

Antes de virar à esquina a criança soltou um riso alto, que se destacou no meio das buzinas e do sussurro inquieto da multidão e ecoou no meu coração como reticências, como fim de um capítulo de um livro nunca escrito...

Virar de páginas - olho para as nuvens que pairam esquecidas no céu que não há, as horas passam com sensação de eternidade, respiro profundamente e sigo narrando o texto que continua, mas não segue a mesma história...

Fiódor
Enviado por Fiódor em 04/03/2016
Reeditado em 24/03/2016
Código do texto: T5563275
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.