Fumaça

essa fumaça já não é o alento das multidões que se debatem no meu sangue essa fumaça já não é alívio de silêncios já não é neblina no olhar, mas cegueira temporária que arde e paralisa; essa fumaça já não é especialidade não é deleite não é charme essa fumaça já não é alívio, essa fumaça se tornou um rito, um devorar de vazios cinzentos que trago pra dentro do peito com um ímpeto de risos que pairam no liame entre a loucura e a sanidade, lamentavelmente rindo e chorando ao mesmo tempo, abraçando o tic tac dos relógios e do barulho intragável do ventilador que martela meus segundos com ritmos e torturas que aceito de bom grado. essa fumaça já não é poesia, mas uma faísca dos pequenos suicídios aos quais me submeto diariamente e sinto que cada vez mais aceito o prazer de ajoelhar-me no escuro para que ela dance sem que eu possa vê-la e concluo em negação que é possível amá-la sem tocá-la, é possível amá-la e odiá-la simultaneamente com mãos ansiosas que só podem tocá-la mediante seu assassinato com os ventos que meus movimentos trazem e assim sigo compondo uma melodia que também se perde na pronúncia das palavras, sigo arquitetando uma maquinaria que segue a todo vapor nos trilhos das minhas entranhas tornando-me cada vez mais escurecida por dentro como uma metrópole caótica em constante estado de alerta, irremediavelmente poluída e irremediavelmente danificada pelo cultivo de tragos e suspiros...