DEPOIS DE MORTO
Outro dia, eu morri. É verdade. Ou, pelo menos quase.
Esse quase é verdadeiro porque eu não minto.
É da altura desmedida dos anos já vividos que afirmo
certo de que outro dia eu morri: a coisa toda é destino, acidente.
Sua vida pode ser apenas um caso contado, um conto onde não se encontra culpa
mas enredos e versões, impressões e desvãos, visões narrativas
para o como ou o quando do ocorrido.
Ou,
polindo os dados,
porque morri, vou inventar maneira de delongar certo estado de espírito.
O que mais faria, é um fato ter morrido. E depois, desencarnei tantas vezes nessa vida
que ainda sigo espantado, assim emendado pedaço em pedaço.
Vou contar mas antes advirto, componho versos para me distrair somente.
Narro mentindo, descobrindo o desnecessário afirmo um qualquer de verdade.
O destino é mesmo um acidente inevitável.
O destino são rasuras no passado, são como as linhas de um rosto que já foi conhecido.
O destino está nos traços de qualquer rosto desfigurado e desconhecido.
***
Já na curva distraído eu pensava:
metade de um homem é o conjunto das palavras que aprendeu,
a outra metade dele, a sóbria, é silêncio. A mão cega do destino parou o tempo e eu cai.
Depois da queda, o sangue. E depois do sangue
o oco branco do osso, escarnio vivo de lenho aberto, me sorriu.
Caído no chão sem retórica e auxílio, acordei assustado.
O silêncio tinha engolido o vocabulário, comido quase tudo.
***
No chão, acordei para a eternidade vazia e faminta.
Desamparado no meio, no entre. Acordei no frio com medo no ventre visto por dentro.
Nascendo ao contrário, do outro lado a engrenagem rolava sobre o horizonte.
A eternidade rolava sobre o inteiro de tudo que se partia.
Na dor a consciência percebe o fim.
Ao invés de recomeço, a vida sem bandagens, sem liames ou vínculos.
Nenhum véu a cobrir o mistério sobre os véus a cobrirem os mistérios.
Depois da morte não há luz ou fantasia de qualquer duração.
Não há nada depois da ultima dor,
apenas o desejo de ser outro eu mais uma vez.
Morrer é um interminável grito sem gesto, a vida é uma boca faminta.
Uma boca faminta que devora a sorte de sermos animados,
boca que devora até morte. Imensa boca d’água engole tudo.
***
Dito aquilo, escrevo isto e canto distraído um saber antigo.
Uma verdade qualquer embrulhada no instante.
É o motor nas trevas do mundo.
Tudo que em mim parece é fome, insaciável pereço.
Apressa o medo meu fim.
***
Minha distração nesse perigoso mar de ruídos
cortantes e ondas contínuas tem sido distinguir
no som das palavras unidas ao reboliço dos ares
a lira soando harmoniosa e constante.
É o fogo fátuo das ideias e dos planos,
das cadeias fugidias e imagens desencadeadas pelo atrito das impressões.
Assim deslizo míope louvando a inobservância na vigília
e a distração saborosa no excesso de zelo.
Isso é um resumo instável, um esqueleto metálico.
É um poema maltratado, uma distração obsessiva.
É a rigidez do plano desde a rua até os acentos mais nobres.
Verbos amputados alimentam pausas desnutridas,
polir superfícies repisadas tem sido minha distração.
Imaterial inverso.
No limite, a vida suportável nos ciclos de viés notada.
Sem cor. Osso, por exemplo: palavra gasta, fraturada e engessada, cravada noutra palavra tala ou cova
e logo se torna palavra mortalha para num átimo,
renascida em trapo, dar-se elegante e renovada
drapeada leitura.
Minha distração, depois de morto, tem sido o hábito de polir.
Fazer tinir no metal o ruído constante, reboliço dos ares .
***
Subcutânea razão, vazio sem olhos, a boca engrenagem faminta
outra carne se ergue da estilhaçada pela dor.
***
Também eu tenho sido distração para sombras.
Julgo ocultar o cansaço vestindo o meio dia.
Para esconder o desejo mais simples, revisto o desnudo
porque o medo se move nas trevas deste mundo
e a completa solidão é o fim do fôlego dentro de um grito
na agonia que mais ninguém vê.
Antônio B.