Epifania numa Chuva de Coisas
Epifania numa Chuva de Coisas
Foi numa tarde tardia um chuvaréu insano, caía tudo do céu, inclusive teimosia, eu estava no meio dela, até os santos se reuniram me vendo encharcado e gargalhado, sai da chuva menino! gritavam desolados, e saíam umas cascas de mim, tudo que me deixava empolado ficou no chão empastado, uma pasta de coisas.
Tinha uma coisa azulada, tipo bijuteria faminta de ladeiras mal vistas, tinha uma coisa importada, vinda de longe, parecia culpa exprimindo "olha, faltou trato, faltou paciência", outra coisa daqui mesmo, subia pelas paredes fazendo um desenho esquisito, serpenteante, exalando num sussurro que "O sofrimento, meu caro, é proporcional a sua incompreensão".
Ai, as coisas que se pensa no meio da chuva torta, ferrenha, ungida, água nos joelhos, ossos estalam, veias saltam, chovia tanto que eu achei até que fosse limpar, e saíam umas camadas de mim, que me deixavam empertigado, entrava tudo na terra, e eu molhado e liso que nem corpo velado longe de casa vendo o chão atolado de coisas.
Tinha uma coisa de herança, outra roubada, tinham epítomes plagiadas e pândegas colhidas no seio dos brindes familiares, quando havia família grande para todos os braços, quando todos eram polímatas e nem chover chovia, mas nessa tarde tardia trovejou a mais ampla, rasa e irrevogável quitação de água pra tudo que é lado, entrando e saindo pelo ladrão. Sai da chuva, menino! gritavam os sábios, os zarolhos e os salafrários, eu retrucava que nada! batendo os pés nas poças e pedindo mais e mais com a certeza de que será harmônico, preciso, rítmico o conjunto das gotas e o sassarico do vento.
Passou um dia, passou dois, passou três, uma semana, eu ali encenado com água nos lábios, choveu tanto que aprendi latim, "Res firma mitescere nescit", (uma vez de pé, mantenha de pé), de dia eu tiritava esgazeado, de noite pulava avacalhado.
Sai da chuva, vadio! Berrou um velho encarquilhado, sorri besuntado da água que fugia de cima pra se esconder embaixo, nas minhas ranhuras, cacarejei só sair daqui quando estiver untado, bravio e limpo como um assobio.
O que é preciso para abrir mão desta coisa?
Tinha uma coisa emprestada, uma coisa nova, outra velha, uma ligeiramente encardida, uma coisa de plástico, outra de madeira, não foi por falta de aviso que encarei dado caminho com aquela mulher, as línguas sibilavam, "olha, ela tem sequelas...", retruquei que não se ama apenas o que é perfeito.
Riram, coisados de tanta chuva.
(Imagem: Robert Frank)
Epifania numa Chuva de Coisas
Foi numa tarde tardia um chuvaréu insano, caía tudo do céu, inclusive teimosia, eu estava no meio dela, até os santos se reuniram me vendo encharcado e gargalhado, sai da chuva menino! gritavam desolados, e saíam umas cascas de mim, tudo que me deixava empolado ficou no chão empastado, uma pasta de coisas.
Tinha uma coisa azulada, tipo bijuteria faminta de ladeiras mal vistas, tinha uma coisa importada, vinda de longe, parecia culpa exprimindo "olha, faltou trato, faltou paciência", outra coisa daqui mesmo, subia pelas paredes fazendo um desenho esquisito, serpenteante, exalando num sussurro que "O sofrimento, meu caro, é proporcional a sua incompreensão".
Ai, as coisas que se pensa no meio da chuva torta, ferrenha, ungida, água nos joelhos, ossos estalam, veias saltam, chovia tanto que eu achei até que fosse limpar, e saíam umas camadas de mim, que me deixavam empertigado, entrava tudo na terra, e eu molhado e liso que nem corpo velado longe de casa vendo o chão atolado de coisas.
Tinha uma coisa de herança, outra roubada, tinham epítomes plagiadas e pândegas colhidas no seio dos brindes familiares, quando havia família grande para todos os braços, quando todos eram polímatas e nem chover chovia, mas nessa tarde tardia trovejou a mais ampla, rasa e irrevogável quitação de água pra tudo que é lado, entrando e saindo pelo ladrão. Sai da chuva, menino! gritavam os sábios, os zarolhos e os salafrários, eu retrucava que nada! batendo os pés nas poças e pedindo mais e mais com a certeza de que será harmônico, preciso, rítmico o conjunto das gotas e o sassarico do vento.
Passou um dia, passou dois, passou três, uma semana, eu ali encenado com água nos lábios, choveu tanto que aprendi latim, "Res firma mitescere nescit", (uma vez de pé, mantenha de pé), de dia eu tiritava esgazeado, de noite pulava avacalhado.
Sai da chuva, vadio! Berrou um velho encarquilhado, sorri besuntado da água que fugia de cima pra se esconder embaixo, nas minhas ranhuras, cacarejei só sair daqui quando estiver untado, bravio e limpo como um assobio.
O que é preciso para abrir mão desta coisa?
Tinha uma coisa emprestada, uma coisa nova, outra velha, uma ligeiramente encardida, uma coisa de plástico, outra de madeira, não foi por falta de aviso que encarei dado caminho com aquela mulher, as línguas sibilavam, "olha, ela tem sequelas...", retruquei que não se ama apenas o que é perfeito.
Riram, coisados de tanta chuva.
(Imagem: Robert Frank)