Era raiva não, era marca de dor.

Não mais aquilo, nem isso. Existe uma parede que finda o que se quer, o que realmente se quer. O duro das horas, o que não exprimo por medo ? Conseqüência do tempo, inventado, alucinado. Memória transfigurada em emoção, o que se acha ser e não é. Não encontro o “é”, somente espinhos: sabem que a vida é bela. Ponto. Não, não mais. Bastam saudades, nomes, balbuciações. A estrada que leva a algum lugar (a uma rapariga loira na estrada de Sintra), a pulsação daqueles encontros que nada traziam, as inconstâncias de um ser expectante, a esperar uma concordância perfeita, ao menos uma recíproca... Nada teve, e não mais terá. O encontro matinal, provocado, fortuito, coincidente, brilhante... E como brilham aquelas cores e efeitos mágicos, como rápidos se transmitem, longes, doces, frustrantes pela incapacidade de ser, pela capacidade de poder e não ser, querendo, não devendo, talvez. Não mais brilhos, nem faíscas, nem temor de não se receber o que se criou... involuntariamente ? Uma dimensão de vida que não se sabe por si, nem pelo outro, acaso desinteressado dos amantes que não se amam, adivinham tudo. Sinto: não se admiram deveras. Criaram-se toalhas e os ambientes de pouca luz, as cortinas vermelhas, janelas entreabertas, água quente, desejos a queimar, vontades reveladas entre risos soltos, erro, erro, erro. Não escutou: olhos distantes, corpos acesos e pálidos. Não mais essa repetição dolorosa, essas aparências obscuras, imaginadas, inquietas... Como brilhavam, vãs, sentidas de um sentimento aceito, servil, medíocre, ignorado. Quando as palavras cortam, vermelhas, acres e desenganadas, o que inventar ? Não, não mais. O instante de se perceber afetada, suja, invadida e espalhada. Demasiadamente espalhada: pedaços soltos, mãos apertadas, desinteressadas, paixões reveladas sem quatro paredes, num espaço encenado. (...)

Não mais, não mais, grito abafada, em silêncio, no movimento frenético dos momentos a pisar, escondidos atrás da cortina. Piso-os, navalhas ! Solto, giro, desprendo. Pulo, passo, emoções: não, não mais. Na ponta dos pés, uma lágrima de dor, a sensação de um balde de lavas a transbordar, e a visão clara do excesso, do dever-ser que não foi. Não foi, não foi. Passo adiante, coberta de flores molhadas: violetas, margaridas, anas, joanas... Outrora abertas e secas na pouca paisagem. Não mais o alheio, não mais a espera de jardins floridos e laranjas, não mais o que te cerca. Mais uma lágrima: a essência vazia e lúcida da morte. No mar que afunda, apenas uma nota que mal-me-quer soa... Todas as canções me evocam, sinto. Senti a alegria recortada e posta na estante, uma companhia tapada e esquecida. Num cumprimento cego, cálices e quimeras.

Palavras e vozes prostitutas.

Nem afagos, nem sorrisos, nem entrelinhas, nem estrelinhas.

Dantes e castelos e dragões.

Fogo: não existiram heróis.

Fica o que se quis, a impressão ligeira de nada perder: ocaso.

Recife, 04/06/07.

Gabrielle Lucena
Enviado por Gabrielle Lucena em 10/01/2016
Reeditado em 27/03/2016
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