Cara de quem nutre fantasma
I – o etnólogo vira personagem
Meu nome é Buell Quain.
Antes de me transformar no personagem principal do romance “Nove Noites”, do Bernardo Carvalho, eu era um etnólogo americano. Fascinado por ilhas, desertos, viagens, só entrei no livro do Bernardo porque vim parar no sertão central do Brasil.
Andarilho solitário, eu gosto de escrever cartas. Adormeço embalado por histórias. A minha é curta. Uma historinha que acaba aos 27 anos, como você vai ler: não ultrapassa esta lauda. Uma vida, uma página. Não são páginas da vida.
II – o suicida arrasta um fantasma no seu rastro
Um amigo me define como um cientista suicida que bebe, fuma e faz do corpo um laboratório. Para ele, o meu silencio carrega um segredo. Sou um homem que arrasta um fantasma aflito no seu rastro.
Nos anos 30 do século XX, vivi entre os índios krahô no sertão de Goiás. Nas tribos, à noite, o mundo ecoava em ondas que dilatavam a minha escuta, e eu passei a suportar a diferença. O silêncio ficava carregado do que eu ainda não era. Não sabia que jamais seria.
III – Da América para Goiás passando pela Lapa
Nasci na América, no futuro do pretérito: seria.
No Brasil, morei numa pensão da Lapa, no Rio de Janeiro, a capital do país. Depois vim morrer em Carolina – uma cidadezinha morta no interior de Goiás, sabendo que o bloco da família não viria atrás.
Sem nenhum desejo de ser governado pelos mortos, e com a fome de quem atravessou o sertão necessitado de água e pele, eu vi: a realidade é o que se compartilha na sede e na superfície. Descartes eu deleto; vale a razão de Deleuze: o mais profundo é a pele.