O corvo e a gaivota

As águas eram como um lençol sendo estendido sobre a cama, na mansidão com a qual se desenhavam até as margens do lago. Abraçavam meus pés sequencialmente, conforme a intensidade da brisa que varria e espalhava a energia presente para todos os cantos daquele lugar.

A dança das correntes límpidas eram os mais elevados acordes celestiais, desaguando através das pedras. Ali onde eu estava, já distante da agitação da cascata, a água se fazia intacta de tal modo com que era possível notar o espelho das plantas e da grande estrela solar iluminada entre as nuvens, que se revelava no centro do céu, cercado pelo telhado de folhas das árvores.

E no mais profundo do lago, um ser que me fitava feito sereia que vem de encontro com seu observador para somente observar. Era sereno e sublime. Pele e cabelos esmaecidos pelo verde esmeralda do imenso espelho. Era minha própria imagem, num outro ser que me observava pacificamente como uma amigável sedução. Então, por um segundo eu pude compreender a natureza vaidosa de Narciso, a qual talvez fosse mais uma mistura onírica de devaneio e adoração. Todavia, era necessário não confundir - me. O reflexo não desejava que eu fosse ao seu encontro, tampouco era o anjo da morte vindo convocar -me. Era tão somente eu mesma em outra fisionomia.

Ela seguia feito cópia meus movimentos e expressões sem jamais retirar dos meus os seus intensos olhos, trazendo para o mais íntimo de mim, minha própria verdade. Seria talvez um reflexo do passado ou simplesmente minha traidora imaginação? Era certo. Tratava -se da personificação de meu mais enterrado desejo, a silenciada personalidade que me pertencia. Eu era anjo. Assim, sem qualquer auto elevação nem nenhuma enganação de ser algo além do que se é. Eu era meu mais inatingível sonho. Uma branca iluminação que jamais cuidei para que fosse, bem como a serenidade intimadora tão estranha para mim. Aquela, perfeitamente moral, a qual nunca estivera familiarizada.

Foi então que um corvo ágil, negro e feroz se rebateu entre as folhagens. Como carcereiro que fugia das jaulas, saiu bruscamente, confuso e eriçado, vindo cortar o reflexo da paisagem, o que me desatentou da visão. Vendo- o na água aparecer e sumir como um traiçoeiro da paz, intenso arrepio me percorreu como se trouxesse por meio de sua aparição, o velho medo de viver. Quando voltei os olhos para minha imagem, já não era anjo. No entanto, curiosamente, ainda era eu mesma. Realidade crua e escancarada , dessas que nos infiltra na alma a dor e o choque da existência.

Meus olhos melancólicos não eram novidade, mas eram nesse momento, surpresa frente ao contraste com o semblante do anjo. Meus tristes lábios pareciam os mais calados que poderiam haver , tal como se a angústia os tivesse cerrado por toda a eternidade. E minha tez, pálida e grosseira era a mais nítida imagem do envelhecimento. Essa confusão trouxe -me a mais árdua dúvida de identidade. E agora, que sou? Anjo ou corvo? Sou do tamanho que sou ou do tamanho que vejo? Remexi revoltosamente os pés agitando as águas num conflito de forma com que nada mais era possível ver. E apagando a mim mesma, nada mais havia senão uma estrela fixa que jamais seria capaz de apagar. Foi a estrela que eu decidi seguir.

Beatriz Beraldo
Enviado por Beatriz Beraldo em 10/12/2015
Reeditado em 06/03/2016
Código do texto: T5476264
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