Eu ainda acredito
Não, eu não alienada para ver o mundo de dentro de uma lente multicolorida e doce onde não há dor, nem sofrimento e nem angustia, nem fome, nem desrespeito e crueldade. Eu vejo tudo isto e vejo muito, vejo demais. É exatamente por ter esta pele fluida que vê muito mais do que gostaria, que pinto ! humildemente pinto cores que qual aquarelas pasteis , escorrem pelos cinzas berrantes, pinto a luz onde o vermelho assusta, tento desesperadamente suavizar os escuros e frios becos deste mundo. Nasci com este defeito e é incurável, eu sofro dolorosamente as dores das árvores cortadas, eu choro por dentro quando um rio sangra sua dor pelas terras, vendo em seu ventre, seus filhos sufocar ! eu morro por dentro um pouco, todas as vezes que vejo um animal cair sem forças, por falta de água e comida! Eu me firo ao ver o abandono dos pais á seus filhos, eu sufoco de tanta dor quando vejo uma mãe abandonar um bebê numa lata de lixo, e depois ainda tentar se explicar. Não, eu não sou alienada para ver o mundo sobre uma lente colorida. É que como eu ja disse, eu nasci com defeito... na minha infância, cresci sozinha e ficava horas á fio, sentada no meio das árvores escrevendo com elas e quem sabe para elas, eu passava horas sentada na beira de um riachinho que passava na casa de meu pai, e como ele era lindo e frio, cheio de peixinhos e pedras que eram meus cristais. E quero crer que foi lá que eu me apaixonei pelo silêncio, um amor que nunca modificou-se, é perene e eterno. Este meu defeito me faz abrir largos sorrisos sempre que vejo o sol nascer, e eu acordo cedo todo dia só para ver ele, com isto me revoam beija flores, sabiás, bem-te-vis, rouxinóis, e como são lindos e como me alegram... quando dou sorte, ainda vejo o pica-pau, os saguins e as preguiças... eu os vejo e só por vê-los, meu mundo já fica mais bonito. Eu cavo minha alma todo dia e arranco dela toda a ternura que nossa realidade nos imputa, todos somos fontes infindáveis dela, eu busco em mim o riso pelas coisinhas bem pequenas e assim eu aprendo a fazer rir os que choram. Não, eu não sou alienada pelo que acontece longe de mim, na Síria, eu sei que as mães também choram, na África , na França, aqui... Neste nosso mundo todo tão carente de amor. Os homens perderam-se de si mesmos, e nomeiam isto de progresso, tecnologia, sucesso, "felicidade!"
Mas eu prefiro ainda assim, olhar pelos olhos dos bichos, que nos olham com olhos de espanto, mas mesmo assim ainda lambem nossas mãos, ainda cantam para nós, ainda se aproximam, ainda fazem com que este nosso mundo tenha cara de mundo ! Eu me debruço sobre um papel e escrevo, escrevo, e escrevo... da mesma forma que eu fazia quando eu era uma garotinha e chorava escrevendo no meu caderninho lá em baixo daquela árvores, porque eu acredito que quem sabe assim, algo que eu possivelmente diga, possa fazer raiar um sorriso na face de alguém, como fazem os passarinhos comigo. Porque eu "sonho" que minha poesia pode de alguma forma fazer bem a alguém, eu escrevo porque foi esta a maneira que eu encontrei para ser grata por tanta beleza que durante minha vida inteira, foi minha companheira. Não, eu não sou alienada com a dor do mundo, é que eu nasci com defeito, esse defeito de ainda acreditar na beleza , não tenho culpa se as cores explodem em meus olhos e fazem festa ! Não tenho culpa se uma melodia pode me fazer chorar facilmente de emoção !
Se eu agradeço pela lua, pela chuva, pelo sol, pelo ar... eu não tenho culpa de amar. Ainda acredito na mudança dos ciclos, nas estrelas e na transparência fria e corrente daquele riachinho da minha infância, ainda acredito no tocar das mãos, nos olhos nos olhos, e nas lágrimas sinceras. Eu ainda ouso acreditar nos arrependimentos e nos perdões, mas mais que isto eu acredito no sol e no dia que virá... como vinham as jangadas e suas velas brancas no mar da minha janela, quando o dia acordava e eu era só uma garotinha, é eu ainda acredito...
Márcia Poesia de Sá - 2015.